Monday, March 23, 2015

não olhes para trás



Jordânia, vale de Siddim. Contam-nos os hospitaleiros descendentes de Lot que os habitantes deste vale ofenderam Deus e o poderoso os castigou submergindo tudo. Estacionamos o jipe, ao nosso lado alemães, ingleses, árabes sauditas e espanhóis. Pagamos entrada para o Mar Morto. Olhamos o enorme lago (mais de mil quilómetros quadrados) de sal e betume espalhado a leste do deserto de Judá; aqui chamam-lhe Al Bahr al Mayyit. Podemos ver na outra margem as montanhas de Israel para quem é Yam ha-Melah. Os gregos diziam que gases venenosos se desprendiam destas águas, enquanto os árabes garantiam que as aves ao tentar sobrevoá-las se precipitavam subitamente, sem vida. Visto um fato de banho debaixo da túnica. Visto um fato de banho debaixo dos olhares gulosos dos jordanos que alugam guarda-sóis. Nas espreguiçadeiras deitam-se mulheres de burqa. Pelas margens brincam árabezinhos. Está sol. Avanço para o mar de sal. A experiência promete ser única (isso é garantido, todas são). Avanço lentamente, há em todas as pessoas um silêncio especial apenas perturbado pelos gritos de uma espanhola: «pero que es maravilloso, mira que flutuo! Ah! Ah! Iiiih! e es mui bueno para la piel, no? voi quedar-me aqui, como sera para el pelo, hã?» O chão está coberto de seixos escuros. A água é quente. Monges diziam que o seu nome é inferno, que as suas águas são quentes porque sob ele arde o fogo das furnalhas de Satanás. Que nas suas profundezas vivem os danados castigadas pelo divino. Que é impuro. É alimentado pelo Rio Jordão mas garantiam que as águas sagradas não se misturam com as desta chaminé infernal, são absorvidas pela terra antes de se encontarem. A água é espessa, turva, de cheiro indefinido. Os pés avançam a custo, colando e descolando do fundo pegajoso, e, logo que passa a linha da anca, a espanhola tem razão, flutuo! É impossível pôr os pés no chão e é difícil acreditar que se deva ao sal, a força da água é estranha. Não é possível nadar, não há suficiente corpo dentro da água. E o desiquilíbrio, por mais que o desafie, não acontece. Telmo diz-me que qualquer gota que entre para os olhos é extremamente doloroso, por isso não é em saltos e jogos de vólei que passo os meus minutos nas águas do mar Morto. Como descrevê-lo? É estranho. É difícil entrar, como se o mar se recusasse a aceitar o volume do meu corpo, que perturba o seu. Depois de conseguir avançar, de pés no ar, como um sapo espalmado e inerte, flutuo. Não acontece mais nada, flutuo. Rabis diziam que homens lançados nestas águas mesmo que aqui ficassem durante dias nunca se afogariam, que aqui o ferro flutua, e as penas se afundam. Flutuo. Não consigo pensar se é bom ou não para a pele e decido não molhar os cabelos. Neste mar a concentração de sal é 10 vezes superior à dos outros oceanos. Qualquer peixe que nele entre morre imediatamente. Mas dizem que nestas águas mortas vive Tirus, uma serpente monstruosa de veneno letal, que brilha como ferro em brasa, que quando morde um cavalo mata também o seu cavaleiro. A água sente-se na pele como um ser, que se agarra a nós, que nos apalpa, que se espalha no nosso corpo como uma camada de creme espesso. Provo a água amarga. Diziam ímans que as frutas colhidas nestas margens, embora de aparência deliciosa, tinham no seu interior cinzas. A sudeste daqui ergue-se Jebel Usdum, a Montanha de Sodoma, feita de sal. Aqui o vento e a água esculpem pilares, figuras. Aqui, antes, habitavam homens cruéis e impuros. «Certa vez, Plotit, filha de Lot, alimentou um mendigo. Os outros viram: tiraram-lhe as roupas, cobriram-na de mel e ataram-na sobre a muralha da cidade, para que morresse picada pelas abelhas.» Sanhedrin 109 Ofendem deus, deus castiga. Lot é poupado graças à sua hospitalidade: «Salva-te, se queres viver não olhes para trás, não te detenhas na planície, foge para a montanha.» Génesis 19:17 «O Senhor fez cair sobre Sodoma e Gomorra uma chuva de enxofre e fogo. A mulher de Lot olhou para trás e imediatamente se transformou numa coluna de sal.» Génesis 24, 26 É verdade, “sempre, em todo o lado, para todos”. Os judeus, cristãos e muçulmanos estão de acordo: Nas margens do Mar Morto há uma estátua de sal que aprisiona o corpo e a alma da mulher de Lot. «Eu vi-a, a estátua existe ainda hoje», acreditam. Mesmo que factos o questionem: se nas mutações do vento e das águas, se apresenta por vezes enorme, com mais de dois metros, de fé inabalada afirmam os crentes: «existiam gigantes nesses tempos». Se acontecia que se formava num lugar e depois num outro - «significa então que a mulher de Lot ainda caminha». Se várias estátuas apareciam em grupo isso só tornava o mistério mais denso. «Nós visitámos o sítio entre o mar e a montanha, não conseguimos ver a estátua porque estávamos demasiado longe; mas vimo-la, com a força da fé, porque acreditamos nas Sagradas Escrituras que falam dela; e ficámos maravilhados». Os crentes visitam-na em peregrinação de fé, vêem-na, de costas voltadas para o céu, tocam-na, arranham-na, põem um pedaço na boca e todos asseguram: “sabe a sal”. Faço o meu caminho para fora das águas. Digo-o assim porque não nado ou sequer flutuo, não sei, avanço, cabeça e pés empinados fora de água, como um arco invertido. A custo, como o tal sapo dentro de uma tigela de gelatina que solidifica. Na saída procuro um seixo bonito - gosto de coleccionar estas coisas – o Mar Morto acompanha-me, uma camada de sal, mole e grossa, mancha-me os braços, as coxas, a testa. Uma camada que seca, faz comichão e pica. De acordo com o Talmud, estou coberta de Melach Sedomit, sal sodômico, o sal enviado pelo céu, pelo senhor. Envolvo-me em lama no lugar mais baixo do planeta. O sal, a serpente, os danados envolvem-me. Espalho as histórias d’O Livro. Mergulho com gosto nas piscinas das margens do mar morto. No fundo abro os olhos, como podem esta e aquela água ser o mesmo elemento? Compro cremes de fórmula La mer a preço Nivea. Seguimos por uma das mais antigas estradas do mundo, a auto-estrada do Rei, sem olhar para trás.

O zelador do templo


60km a Oeste de Homs, na Síria. 


Tiramos os sapatos. Cubro-me com um lenço negro. Entramos na mesquita pela porta Quiblah virada a Meca. Numa imensa parede batida pelo sol destacam-se epigramas em caracteres árabes. O zelador do templo aproxima-se, murmura algo e em inglês hesitante começa a ler para nós: «As inscrições recordam o nome de um emir chamado Man Atil Zaidan. Logo que subiu ao trono revelou-se ambicioso. Interessado apenas em obter dinheiro para a corte aparatosa, sobrecarregou as cidades com impostos. O Emir tinha um vizir (o que ajuda a carregar o peso) chamado Obaid Hazen, homem bom e piedoso que, preocupado, resolveu intervir.» Afasta-se da parede, sentamo-nos nos tapetes que cobrem o chão, continua num quase sussurro: «Uma noite Hazen foi ao jardim do palácio e enterrou sob o banco predilecto do rei, uma caixa cheia de moedas de ouro. Certa tarde sentou-se o emir Zaidan a repousar. Perto de si, seu vizir. Duas andorinhas vieram pousar numa amendoeira. Cantavam. O vizir mostrou-se muito atento aos pássaros e em dado momento sorriu, ficando depois sério. O monarca interrogou-o: - Por Allah? - Senhor, Príncipe dos Príncipes, vou confessar um segredo, aprendi com um sábio hindu a linguagem das aves. - Que extraordinária revelação! E de que falavam estes pássaros? - O passarinho azul que está agora a saltar do galho dizia ao outro "Dormita o nosso rei e nem imagina que debaixo dele se encontra enterrado um tesouro!". - Ele disse isso? Espantoso! O soberano ordenou de imediato que retirassem o banco e escavassem. Foi encontrado o cofre que o vizir tinha enterrado. O rei rejubilou, era certo que o seu ministro compreendia a passarada inquieta. Certa vez, ao cair da tarde, regressava o Emir a casa, com o vizir Hazen. Ao passar junto a uma muralha o senhor da Síria avistou duas corujas: - O que dizem? O vizir aproximou-se. Súbito mostrou-se tomado de fúria. Saltou do cavalo, apanhou uma pedra e atirou-a. - Sucessor do Profeta, perdão! Mas uma coruja reclama da outra: Prometeu como dote à minha filha sete cidades arruinadas, onde estão? - diz a mais velha - Há que ter paciência, verá não sete, mas 70! Basta observar a forma criminosa como o rei Zaidan governa, em poucos meses reduzirá a Síria a escombros. O emir ficou em silêncio, a profecia da coruja tocou o seu espírito.» O zelador aponta no texto sagrado: - «Aqui está o nome do emir Zaidan, até hoje lembrado por crentes e infiéis.» - «E o nome do vizir?» - «Não precisa de figurar aqui, está para sempre escrito no céu deslumbrante da Síria.» Acocora-se no chão e continua: «O famoso Califa Al-Mutawakil (que Allah o tenha!) disse ao seu vizir Calil Sadek: - Minha esposa Djohar completa amanhã 23 anos, quero surpreendê-la. Iallah! Vai! Procura no suq! Uma hora depois Sadek e um damasceno entravam no divan real. - Diz o teu nome, ó irmão dos árabes! Mostra-me as tuas preciosidades e faz conhecer o preço. - Que Allah, o Exaltado, estenda sob os pés do Príncipe o tapete da paz e a areia da felicidade e da glória! Melil olbilad el Kabir! (Salve o grande Rei do país!) Chamo-me Elias Daud Batah. Aqui estão! Colhidas entre as ondas revoltas do mar de Oman. O califa não escondeu o seu deslumbramento, continuou o sírio: - Emir dos crentes, as cinco pérolas nesta caixa de veludo violeta são verdadeiras e dignas de vossa esposa. As outras cinco, tão lindas como as primeiras, são falsas! Mas é quase impossível distingui-las. - Como pode isso ser? - Ó Rei do Tempo, a Verdade, em sua singeleza, tem muitas vezes a aparência da falsidade - as autênticas têm pequeníssimas manchas e assimetrias. E a mentira, para iludir a boa fé, veste-se com requintes de perfeição, como nestas. - E quanto queres, ó homem do turbante cor de tâmara, pelas tuas pérolas? - Cada pérola verdadeira custa apenas 10 dinares. Cada pérola falsa custará 500 dinares. - Pelo nosso Profeta! É estranho! O certo seria que as pérolas autênticas custassem 500 ou mesmo mil dinares cada e que as imitações fossem vendidas por meia dúzia de moedas! - Perdão, ó Rei dos Árabes, a vida ensinou-me algo diferente: um amigo enganoso, por exemplo, custa-nos caro, ao passo que um amigo leal e dedicado não nos dá dissabores nem prejuízos. Num casamento falso, custa amarguras sem fim o passo errado que a ilusão nos levou a praticar. Mas o que escolhe uma boa esposa e uma união acertada é feliz e prospera. O homem paga sempre mais pelo falso que pelo verdadeiro. Baseado nestas reflexões fixo o preço. Sim, o falso custa 50 vezes mais! Pode parecer estranho ao espírito menos avisado mas imito apenas a vida!» Levanta-se, Uassalam! Na despedida pedimos ajuda nas indicações do folheto do hotel, o zelador responde sorrindo «Sorry, can’t read». 65km a Oeste de Homs, perto da fronteira com o Líbano ergue-se o qalajat al-Husn, orgulhoso e solitário. O castelo desafia o tempo. Numa manhã quente a poeira do deserto satura o ar, Salah-al-Din abandona o seu acampamento. Neste dia despedem-se as mães dos filhos - nas casas dos cristãos como nas casas dos muçulmanos - negócios são adiados, casamentos não são consumados. O castelo desafia o tempo do mesmo modo que nesse dia, do seu interior, os exércitos cristãos desafiaram um frustrado Saladino no seu interminável cerco. Neste castelo os cavaleiros do templo lutaram para defender os lugares santos e os manter abertos ao culto cristão. Neste castelo os mamelucos construíram mesquitas para o seu culto. Numa tarde fresca ouvimos ao longe o sino da igreja no seu interior. Na torre de menagem esvoaçam os estandartes do Rei. Passamos as terras cultivadas que alimentam os seus habitantes, circundamos as muralhas. As portas pesadas estão abertas, avançamos. Passamos a sala gótica, os cães devoram ossos nas tapeçarias. Vemos os frescos pintados pelos Cruzados. Os aposentos reais... O castelo parece intacto, pronto para receber mais uma vez o Rei de Jerusálem. Visitamos o Crac des Chevaliers «o castelo mais admirável do mundo» para Lawrence.

Nao me sabe mal...


Quando começamos a ter saudades das festas de família e das comidas de que não gostávamos quando éramos miúdos, é sinal de que começamos a envelhecer. Lembro-me do cheiro ácido das uvas acabadas de pisar, dos lanches de bacalhau assado na brasa à sombra dos pinheiros, das ceias de bucho de porco recheado à lareira. A comida portuguesa é muito boa e saudável, toda a gente sabe. Quando na Turquia me perguntam que especialidades lusas sei fazer, eu – que sempre preferi comida indiana, chinesa ou japonesa – fico um pouco envergonhada. Na minha infância, as avós cozinhavam ‘tachada’ e os avós temperavam o vinho novo com colheres cheias de açúcar. Lembro-me de que nos dias de festa – na descamisa do milho, na vindima, na apanha da azeitona – a família aumentava. Vinham os tios da Suíça, o priminho da América, os viscondes de Torres Novas, as primas loiras de S. Mamede e as morenas da Chamusca, o tio angolano e os afilhados de Loulé, os padrinhos de Peniche, os tios da Atouguia... A minha mãe distribuía cumprimentos. «Esta é a minha mais nova. Joana Filipa, cumprimenta o primo! Não te lembras dele?». O primo crescera, já estava careca, eu olhava-o confusa... Havia muito trabalho. Durante o dia, todos se envolviam em pó e terra – e eu fugia, inventava trabalhos de casa e estudos inadiáveis. À noite todos partilhavam a refeição – e aí eu não conseguia fugir. Lembro-me do frio, do cheiro a palha e do bafo quente das vacas. À matança do porco era preciso ir com aquela ‘roupa de trazer por casa’, porque «sabes que em casa da avó te sujas sempre», e com aqueles sapatos velhos «para não estragares no lume os bons». Avançava de gorro do irmão na cabeça e Kispo da mãe pelos ombros, botins de borracha pelo joelho e calças de fato de treino entaladas em várias meias de cores diferentes. Era pouco dignificaste. Se chegava cedo e o animal ainda estava vivo, tinha ataques de vegetarianismo e estragava o apetite aos presentes com choros sobre «o pobre do bicho», «a crueldade dos homens» e as virtudes das couves e das cenouras. Às vezes chegava tarde, e o sangue fresco já ensopava o mato espalhado à porta de casa, enjoativo. Depois havia muito barulho e pouca privacidade, longas conversas sobre as minhas negas a Matemática e a minha puberdade precoce. Nestas noites cortava sempre os dedos a partir carne para chouriças e morcelas. Nauseava com as tripas para lavar com água, sal e limão. Brincava pelos cantos mais misteriosos da casa, entre manjedouras e arcas de madeira cheias de sal, milho e roupas velhas. Fazia com os irmãos e os primos bandas de música, com panelas, tachos e bacias. À refeição havia duas mesas, e era na mais baixa que se sentavam as ‘crianças’. Matulões de faces rosadas pelo fresco do ar da serra e aspirantes a artistas urbanas presumidas (como eu), todos se apertavam com os priminhos em terceiro e quarto grau em ranhos e nódoas, na mesa pequena. Todos com o mesmo tratamento do campo – revigorante, vigoroso, bruto. «Comer p’ra diante!», ia ordenando o chefe de família. Hummmm, língua de vaca cozida, delicioso! Havia sempre broa e pão caseiro, que eu comia ainda quente com manteiga e açúcar. Polvilhava de açúcar e canela as ‘filhoses’ que os meus avós maternos feitiçavam na lareira. Provava os cafés de cevada cremosos. Todos passamos por estes momentos em que a família se junta para basicamente comer. Na minha, há os que cozinham e os que comem, e eu infelizmente nunca consegui inserir-me em nenhum dos grupos. Confesso que a culinária portuguesa é para mim indigesta, mas os meus parentes foram abençoados pelo saudável ar do campo e uma pizza ou uma pasta são já demasiada ‘estrangeirice para eles’! Nas ceias de Natal, quando se servia o sofisticado bacalhau espiritual que a minha irmã cozinhava com talento, era quase por favor que os familiares levavam o garfo à boca. Ouvia-se o impagável comentário do meu avô: «Não me sabe mal». E o da minha avó materna: «É bom, não é preciso mastigar». E ainda o da minha mãe: «Sabes o que é bom? É que não é enjoativo». E era por diplomacia que a minha mãe fazia mais ou menos às escondidas um prato alternativo a esta experiência, ou seja, o prato habitual. Na minha família os mais novos não provavam as delícias tradicionais e os mais velhos desconfiavam de tudo o resto. Estou fora da casa materna há alguns anos e envelheço. Sei pelos livros que envelheço. Que quando nos chega a saudade dos cozinhados que a mamã fazia sem pompa – o arroz de grelos, o bolo de laranja, o arroz doce, a feijoada de entrecosto –, e com isso vem o lamento de não ter aprendido com a avó a tender a massa ou a fazer queijos frescos, sabemos que envelhecemos. Estou fora da casa pátria há quase dois anos, e nos caminhos pelo mundo muita ‘estrangeirice’ provei e imagino as máximas da minha família aplicadas à sopa de panquecas da Áustria, ao queijo feta da Grécia, à popular bebida ayrian da Bulgária, ao repolho recheado romeno, ao borsch da Ucrânia, ao caviar da Rússia, à carne de cavalo dos nómadas cazaques, aos olhos de carneiro dos uigures... Em terras turcas, o sentar à mesa – longo, ritual, perfumado – é delicioso. Em Antakya, embora seja pequeno-almoço, os pratos desenrolam-se, sem vergonha, em saladas de pepino, pastas de sésamo e guisados de borrego. Para meze (aperitivo) há beyaz peynir (queijo) e zeytinyagli biber dolmasi (pimentos recheados). Há cerkez tavugu (frango com nozes) no tabuleiro do fundo, e na mesa ao lado as famosas delícias turcas: ton birimi (favos de mel), antepfistikli kurabiyeler (biscoitos de amêndoa e pistácio), tavukgogsu (doce cremoso com frango), bademli gullaç (doce de leite, amêndoas e água de rosas), nuriye tatlisi (pastéis de amêndoa), susam helvasi (torrões de sésamo)... E, nos jarros, os molhos de iogurte em variações sem fim, dos doces aos salgados, dos cremosos aos empastados. É dia de festa, sou a única mulher e ofendo a refeição sagrada com a minha presença. Somos convidados a brindar com Raki. Ou melhor, o Telmo é; eu aguardo na mesa do fundo. Cubro-me com o lenço, pequeno demais para todas as partes do corpo que preciso de tapar. – Que lhe parece? É licor de anis, a nossa bebida nacional! – ... Não me sabe mal – responde o Telmo.

Já que aqui estamos

Goreme, Turquia.

10 horas.



- Estaciona aí, espera, acho que não se pode... desculpe, aqui não se pode?

- Posso?

- Não sei, não percebo o que ele diz...

- Vê aí no guia as frases fáceis.

- Em Turco não há disso, olha aqui, é impossível de dizer. Mas tento, evet? hayir? (sim, não) ele diz belki, espera lá, ora belki é... é “talvez”. Acho que está a gozar comigo.

- Deixa, levamos o Ra?

- Aqui? Mas é um museu.

- É ao ar livre, não perguntes, levamos.

Na bilheteira estranham mas aproveitam, Ra paga meio bilhete

- Bem, é fantástico.

- É incrível não é?

- Mas construíam assim porquê?

- Porque era mais fácil escavar na pedra mole do que andar a carregar. Depois vais ver em Istambul...

- Mas achas mesmo que devemos ir – Ra não faças aí, isso são frescos! – achas que devemos ir já para Istambul?

- Sim, porquê?

- Não sei, ainda não sabemos se podemos mandar de lá o jipe.

- Mas temos este contacto da Vainoglio Shipping.

- Sim, na China também tínhamos contactos e foi o que foi. E na Rússia também havia barco em Rostov e depois...

- OK, não temos a certeza mas em princípio...

- Mas eu agora queria ter a certeza porque se vamos a Istambul e não há transitário? – olha aquela, isto viver aqui dentro devia ser difícil – não sei, tenho receio que cheguemos lá e nada, mais quilómetros e depois...

- Se de lá não der vamos para a Grécia, também temos aquele contacto da Teresa, de Pátras  – as igrejas é por aqui, queres ver ou já não te apetece?

- Sim, vamos. Mas teríamos de ir para a Grécia de novo e ela não deu datas. E afinal vamos para Moçambique ou para o Vietname?

- Então não decidimos que o Vietname fica para depois?

- Sim, mas estamos sempre a mudar de planos.

- Que fazemos então?

- Sei lá, a mim apetece-me passear por aqui, não podemos fazer isto para sempre? Estou a brincar. Tenho fome. OK, vamos tentar... mas os ferrys são sempre difíceis e nós vamos dentro do jipe, num transitário vai lá o jipe sozinho... há histórias de malta que perde tudo assim, afunda-se o teu contentor, só o teu, percebes? Ou não deixam desalfandegar... não te lembras que o meu irmão falou nisso?

- Porque estás tão pessimista? Não és tu que dizes que “há trolls nas palavras”?

- Sim... mas repete lá para eu me convencer, se o jipe for no contentor do transitário nós vamos...?

- De avião, com o Ra - já me deste um beijo hoje?

- Ó pá, não faças isso, eles aqui olham muito, amor!beijam-se Vamos almoçar? tenho fome!

Esplanada.

13 horas.

- O que é que te apetece?

- Não sei, aqueles hummus e assim...

- Há kebabs de carneiro.

- Pode ser. E um pastel daqueles doces muito perfumados.

- E peço isso como ao empregado?

- É... como é que se chama? Tavukgogsu, pede lá para eu ver. Telefonas para a D. Teresa? – ei, este gato saltou para o meu prato! Bicho, bichano, sai lá daqui.

Telefonema transitário grego

- Eu para Moçambique não sei... nós fazemos é muitos transportes para o Cairo... para o Cairo não lhe dava?

- Cairo?... mas como descia depois para Moçambique? Porque por terra não dá, eh, eh -riso nervoso - como poderia ser?

- Só se fosse depois de barco de Alexandria para Maputo, deve haver, não é? De qualquer modo demora, o nosso vai a Amesterdão, compreende? são as rotas que usamos... são sempre 30 dias. Mas porque não veio de avião? Isso de vir assim por terra é um bocado complicado...

- Filipa, diz que são 30 dias.

- Ai! Como vamos ficar esse tempo à espera do jipe com o Ra?

Telefonema D. Teresina, Embaixada portuguesa em Ancara

- Andam a viajar como? Não percebi? De carro?

Pois... estou a ver... mas sabe quem se calhar pode ajudar? o nosso Embaixador no Cairo é muito simpático, telefone, pode ser, não é?

Telefonema Embaixada no Cairo

- A viajar por terra? De Portugal à China? E da China à Turquia? Caramba.

Bom, daqui... como poderia ser? Mas, desculpe lá, mas como é que faria daí donde está para chegar ao Egipto com o jipe? E, desculpe, mas estão a pensar atravessar África por terra? Isso era uma viagem fantástica.

- Quer dizer – Filipa, ele fala em atravessarmos África por terra - Nós gostávamos mas... Bom, estamos aqui a ver barcos, mas demoram muito e não é viajar por terra.

- Pois, isso é pena, mas para seguirem até aqui... Síria e Jordânia, talvez... não sei. Há a questão de Israel...

- Mas nós não temos vistos nenhuns, como não planeámos vir por aqui...

- Então mas se aí na Embaixada vos ajudassem a chegar aqui de algum modo, eu ajudo a partir daqui.

- Mas descíamos como? Quero dizer, há o problema do Sudão.

- Sim, de facto o Sudão é muito complicado... era de evitar, mas deixe-me aqui falar porque tenho muito boas relações com o Ministro Plenipotenciário no Cairo e pode desenhar-se uma rota... sei lá, sei que há um ferry para Port Sudan, não sei, estou a pensar. Falem com a Embaixada aí, eu vou ver.

- O que achas?

- Bom, eu nem imagino, atravessar toda a África por terra?

- Sim. Apetece-te mais que mandar de barco?

- Qual barco, eu já nem penso no barco!

- Mas era mais sensato e seguro, não?

- Sensato e seguro era ter ficado em casa.

- Mas e o Sudão? Nós não podemos atravessar o Sudão!

- Deixa ver, ele disse que talvez haja essas hipóteses de ferrys... Ele ficou entusiasmado não foi? Eu também fiquei!

- Eu também...

Novo telefonema para o Cairo

- Estive a ver, há a hipótese de tomar um ferry de Alexandria para a Arábia Saudita, de lá para Port Sudan, de lá para a Etiópia, porque o Sul do Sudão é que não pode mesmo ser passado. Eu achava muito interessante passarem a Etiópia, numa viagem assim, no fundo é a nossa História, é a rota de Pêro da Covilhã. Mas o que é que sentem em ir viajar num país em guerra?

Se conseguirem vir andando quando estiverem na Jordânia telefonem.

- Agora só falta arranjarmos os vistos.

- Só, dizes tu.

- É melhor avisar o MNE?

- De que queremos atravessar África? Eu até tenho vergonha.

- Bom, vamos para Ancara?

- Vamos!

Ainda hoje Luíz de Albuquerque Veloso, do MNE, nos diz

«Não poderei nunca esquecer o vosso telefonema quando estavam na Turquia a participarem-me que "já que ali estavam", iam primeiro a Moçambique (por terra) e logo iam ao Vietname!!!»


Quando, na Turquia

Quando dois gatos escavaram uma nascente e uma rã voou com asas, pulgas amestradas caíram, e as pedras saltaram sobre elas. O galo foi um imã, a vaca um barbeiro, o javali dançou; tudo isso aconteceu quando o Padishah era velho.


Quando Massis era “A Mãe do Mundo” o dilúvio empurrava Noé pelo Negro Mar, a sua Arca atracou em Ararat. Quando os homens a procuraram subindo o monte foram abatidos pelos curdos. Quando as neves em Novembro cobrem o Monte Ararat, quando o camelo era mensageiro, quando os castores mudavam o curso dos rios, viajamos para cima e para baixo nas rotas terrestres, até à Turquia.


Quando em Esmirna nasceu Homero. Quando os poetas falavam no teatro de Éfeso. Quando Paulo e João pregavam a palavra de Deus. Quando Maria foi reconhecida mãe de Cristo. Quando em Tróia aprenderam a desconfiar dos gregos e dos seus presentes, Eneias partia para os braços de Dido.

Quando as oliveiras davam sombra viajamos nós para cima e para baixo nas rotas da Turquia.


Quando os gregos moravam no cálido vale de Hierápolis. Quando os homens se banhavam nas águas termais das piscinas do salute per aquum e as cascatas de água calcária na colina formavam bacias gigantescas de águas azuis ou verdes. Quando chamavam à colina branca Pamukkale (castelo de algodão), escorregamos na pedra polida pelas águas mornas.




Quando subimos as escarpas de Denizli, em testes às potentes mudanças redutoras do nosso todo o terreno, no seu topo, em construções trogloditas encontramos os anciãos Alevi, Rafat e Ally. «Nós somos três irmãos», diz o mais velho, «o nosso pai morreu há muito tempo e deixou-nos um turbante, um chicote e um tapete de oração. Quem usar o turbante torna-se invisível. Quem se sentar no tapete voa como um pássaro e quem fizer estalar o chicote possui o dom da verdade. Quem deve receber o turbante, o chicote ou o tapete? Esta é uma questão que discutimos continuamente.»


«Quando o primeiro mortal apareceu sobre a terra e os peris rejubilaram sobre o maravilhoso trabalho de Deus, os dews invejaram-no. O pai do mal quis destruir esse trabalho, cuspiu sobre o Primeiro Homem, imaculado, e atingiu-o na região abaixo do estômago. Mas Allah, o todo-misericordioso, rasgou a carne contaminada, atirando-a ao chão. Da marca da carne arrancada surgiu o umbigo. O pedaço de carne, impuro por acção do Maldito, renasceu a partir do pó, e assim, quase em simultâneo com o homem, o cão foi criado. É por isso que Maomé se recusa a tolerar o cão na sua casa.»


Quando para o muçulmano o cão era o seu implacável inimigo procuramos nós hotel na Turquia:

Do you accept dogs?

- Dollars? Yes, no problem.

- No, dogs.

- ...?

- Ão! Ão?

- No, we do not, of course not! Don’t worry about that, we never do!

- No, but we… OK, thank you…


Quando as mulheres escondiam os cabelos e guardavam o sorriso, quando as crianças conduziam o gado, quando o muezzin chamava para a oração entramos nós no Donner Kebab, numa rua de Nevsehir. 


Sou a única mulher na sala com cheiro a cardamomo e carnes guizadas. Depois da refeição o empregado de mesa vem, formal, oferecer água de colónia... a resposta exige alguns momentos de observação dos locais, que a esfregam nas mãos, imitamo-los.


Quando os povos escavavam na pedra ou na rocha as suas casas.

Quando os vulcões Erciyes e Hasamdag entraram em erupção. Quando as variações térmicas da terra fizeram estalar a cobertura das rochas e formaram campos planos de poeira vulcânica, montículos, mesas, montanhas tabulares, canyons. Quando as fadas tocaram com a sua magia as pedras pintando-as de cinza, bege, lilás, dourado. Quando os animais falavam vivia na Turquia um Vizir com duas filhas.

Quando os homens esculpiam igrejas bizantinas nas paredes do vale de Goreme, quando pintavam em frescos serpentes estranguladoras. Quando compramos tapetes em Konya e admiramos nas margens do Bósforo a silhueta recortada dos minaretes que engalanam Istambul, vivia na Turquia um sultão infeliz.


Quando os gregos festejavam o amor com templos e libações foi construída uma cidade em Caria. Quando Afrodite era para os homens o desejo, a beleza, o amor. Quando a terra tremeu trouxe a àgua, em inundações que escureciam o mármore branco das pernas da deusa, ruinaram os seus templos. Afrodisias não mais recuperou. Quando viajamos na Turquia beijamo-nos na entrada principal.


Quando os povos invasores vindos da Ásia Central percorriam as planícies em busca da pilhagem, nas chamadas “planícies de passagem” as cidades são subterrâneas.


Quando nos vendem pedras preciosas falsas e nos oferecem perfumados kahve, café turco, lêem o nosso destino nas borras grossas. Quando mergulhamos pelos túneis labirínticos de Kaymakli ou Derinkuyu conhecemos Aziz.


Quando provamos hummusfelefel, ou baklava, até os heróis dos contos páram para deliciar-se.

O filho Deniz levantou-se:

«Então o Príncipe Hussein esteve aqui e raptou a filha do Sultão! Mas não esperam pela demora, irei apanhá-los aos dois.

Dizendo estas palavras sentou-se, calmamente, bebeu chá e fumou o seu cachimbo de água, depois levantou-se e correu atrás deles.»


Quando a capital da Turquia se chamava âncora, Ancara. Quando foi tomada pelos hititas, frígios, persas, romanos, otomanos, árabes, seljúcidas e mongois.

Quando Istambul era o centro do império otomano, derrotado no final da Grande Guerra. Quando Mustafa andava na escola foi chamado de Kemal (perfeição), quando apadrinhou a nova república chamou-se Ataturk, ou “o pai dos turcos”.

Quando Ataturk foi presidente aboliu o Sultão, o Vizir, o Paxá; promoveu a separação entre a religião e o estado; baniu o Fez (chapéu otomano) e o véu das mulheres; abriu escolas para o ensino da arte; levantou a proibição do álcool.

Quando a região de montanhas nevadas, densas florestas, lagos, pastos, planícies, vales férteis, rios como Tigris e Eufrades era conhecida como a Alta Mesopotâmia. Quando o clima era extremo e as pessoas reservadas.

Quando a Turquia não pertencia à Europa mas as estradas não sabiam, viajamos suavemente, montanha acima, vale abaixo.

Paranóia II


Há na Rússia uma cidade no krai de Krasnodar chamada Sochi.

Aí retidos Telmo e Filipa percorrem as ruelas à procura do porto para perguntar pelo barco que os levaria a Trabson, na Turquia. Era para lá que viajavam. O estado de ânimo de Telmei era sombrio, como sempre acontecia com ele na Rússia.

A viagem tornara-se difícil. As portas da China fecharam-se como uma caixa chinesa, da embaixada do país em Portugal negaram terem deste casal conhecimento e do governo do Vietname responderam com a reserva e cuidado de quem lida com assuntos secretos. Telmei por esta altura já desconfiava de conspiração internacional, tinha a certeza, escondiam-lhe algo, até foi por sugestão da Embaixada de Portugal em Moscovo que foram assim, primeiro enganados, a caminho de Rostov e agora para Sochi. Porquê?

Sochi é uma estância balnear, cosmopolita - dizem-lhes. Mas não parece.

Telmei e Filipenka desconfiam e a Sochi chegam desesperançados. Estacionam os cavalos do Land Cruiser à porta do hotel e à entrada batem na madeira, para afastar as coisas más. Na recepção do enorme hotel Zemushkina as meninas informam, informam que não há barco à três dias porque há tempestade no mar.

Telmei e Filipenka deixam-se cair na napa dos sofás do lobby, em jornais antigos, perdidos nas mesas de vidro, há notícias de um naufrágio. E é aqui que a água do Mar Negro escurece o ar.

No dia seguinte o Ra fica no quarto, os cavalos no parque e Telmei e Filipenka saem a procurar o porto, precisam de ver se não são enganados.

A sala de espera está cheia de pessoas com sacos e malas. Ninguém sabe, mas ainda assim vendem-lhes bilhete para o barco improvável, reservam suite lyuximaginária. De volta ao hotel esperam. Telmei não sabe o que fazer, não consegue ler ou escrever. Desconfia da viagem, das chuvas, do barco... Começa a desconfiar de Filipenka. Os factos e a lógica bem lhe diziam que tudo isto não passava de absurdo, mas era inútil resistir. De manhã, Telmei levantou-se da cama com suores frios na testa. Ao pequeno almoço não come nada e desconfia daquele gosto de Filipenka Joseevna por kefir, a bebida russa com sabor a queijo que ele detestava. E porque comia tantas blinys, as panquecas sensaboronas?

Sochi está coberta de neve, mais uma vez vão saber do barco. Em frente ao hotel um polícia passa, vagaroso, não é por acaso. A sala de espera do porto acumula pessoas, sacos e cheiros. Hanz e Enzo, dois viajantes ao volante de um velho Volvo, esperavam o mesmo barco, e pensavam seguir pela Geórgia, mas, dizia-se, «lá não é difícil entrar, mas é impossível sair». Pelo vidro embaciado Telmei olha dois polícias na rua, porque estão tão calados? Passava dias torturantes, se os lúgubres pensamentos o não largavam durante horas, tal significava que há neles um grão de verdade. Estas pessoas para nos culpar de algo e nos condenar a trabalhos forçados só precisam de uma coisa: tempo. É o tempo que permanecem em Sochi que assusta Telmei.

À saída do porto os polícias interpelam-nos:

- Passport! – de mão trémula entregam-nos, os polícias folheiam-nos,

Where did you sleep last night? – perguntam a Filipenka. Telmei estremece, Filipenka responde apoiada no “Russo básico” da Lonely Planet

Prastite, Ya ni gavaryu pa ruski, ya transit Turquia. Transit! Transit? - Telmei agora tem a certeza, engana-o, é russa! Filipenka explica que disse apenas que não falava Russo, estava em trânsito e ele que fosse chatear outro! Habitualmente o argumento funciona, limita o assédio policial e envia-os, neste caso virtualmente, para outro país. O que se passava é que no imigration card amarelo, que receberam na entrada do país e ao qual Telmei nunca deu atenção há um espaço para os carimbos dos hotéis, para controle policial (!), é só isso. Foi Telmei que fez o check in no hotel, Filipenka não tem carimbo. Parece lógico, claro, rotina, mas Telmei duvida.

Os dias passam, não há barco que se aventure a atracar, quanto mais a zarpar. Telmei telefona de dia e às vezes à noite, nas horas de insónia, mas Ludmila, a funcionária do porto desmente a clemência das marés. No hotel Zemushkina as meninas da recepção informam que vão ser postos na rua porque o visto termina naquele mesmo dia. Telmei Maritrioch estremece, mas não podem sair do país! As Natachas e Ninas não sabem, não querem saber. Que durmam no jipe e arrisquem a vida na esquadra de Sochi, para elas é igual, e já nem lhes dão a chave. Telmei e Filipenka arrastam-se ao gabinete a pedir prorrogação do visto, «Por um dia talvez, se calhar por umas horas, mas é a lei russa...», diz Telmei para si próprio entre ranger e bater de dentes. O processo exige horas em esperas na rua, ao frio. Abrem-lhes a porta mulheres gordas, brancas, empoleiradas em saltos agulha sem capas - cada passo um guincho metálico - maquiavélicas. «I am not a sabaca!», rosna Telmei, enquanto impede com o pé que voltem a fechar a pesada porta, que não são cães!

De volta ao hotel na recepção as meninas informam, informam que são procurados pela polícia!

De Ludmila recebem o telefonema, o barco parte às duas horas, vestem à pressa os casacos e saem de corrida com o cãozinho Ra pela trela curta. Encontram com dificuldade o porto e com mais dificuldade conseguem fazer entrar o jipe na plataforma de embarque. Mas Filipenka não pode entrar, fica atrelada ao cãozinho Ra.

Chove, ensopam as peles do casaco fora de moda que vestiu de manhã. O porteiro de olhos vazados vem chamá-la para que entre, se proteja da chuva, entra, e na primeira oportunidade escapa-se em corrida «corre Ra!, corre!» encontrando Telmei rodeado de oficiais, fiscalizações, carimbos e interrogatórios.

Este é o quinto dia de espera em Sochi, e o barco está pronto, o lyux que os esperava lá dentro? Ouve-se os calhaus de gelo a baterem contra o batelão. Uma humidade, um frio, foram deitar-se. Uma rabanada de vento abriu a porta, para dentro da “izbá” soprou a nevasca.

Paranóia

*na nossa escrita inspirámo-nos nos contos de Tchékov para melhor exprimir o nosso estado de espírito na segunda travessia da Rússia





Telmo viaja na Rússia com a sua jovem mulher Filipa. Levam consigo o cão, claro, não poderiam separar-se do cãozinho. Vêem do Cazaquistão, vão para a Turquia.

Numa manhã de Inverno, com as golas dos casacos levantadas e chapinhando na lama, arrastavam-se Telmei Mariotrich e Filipenka Joseevna pelas filas da fronteira Prigorodnyy. O estado de ânimo de Telmei era sombrio, como sempre acontecia com ele na Rússia.

Numa das ruelas viu formar-se uma fila de pessoas à entrada de um banco, vigiado por quatro guardas. Já antes Telmei Mariotrich vira por várias vezes esta situação, que lhe incitava sempre compaixão e embaraço, mas desta vez o encontro impressionou-o sobremaneira, de um modo estranho. Por alguma razão pareceu-lhe que também a ele podiam agrilhoar, fazendo-o esperar assim, pisando a lama.

Esmagados entre Cazaques e Russos aguardaram na fila de controle de passaportes. É a vez de Janocas (Filipenka Joseevna) entregar o seu e se colocar atrás da linha amarela, em frente ao espelho, a olhar para a câmara. A Sra. atrás do balcão estava treinada para o efeito - detectar passaportes falsos. Observou atentamente a fotografia e o rosto de Janocas, verificava os olhos, o queixo, a testa. Segue-se a vez de Titéu (Telmo Mariotrich), a Sra. olha-o fixamente um momento e faz um telefonema. Telmei e Filipenka estranham, «Porque telefona ela? Para onde?», do interior avança Ivan, jovem de suiças pretas, olha para o passaporte, um tempo, as sobrancelhas espessas de Titéu seguram gotas de suor, por alguma razão transpira, como se fosse culpado e o passaporte fosse de facto falso, não é, mas ele transpira. O oficial acede, avançam.

Na alfândega avançam os Dimitri em uniformes de sarja verde «Declaratzia!», gritam, enquanto estendem o formulário - Telmei e Filipenka já conheciam este papel que obriga a tudo declarar ou a correr o risco de tudo deixar na fronteira de saída do país - preenchem a medo.

Já na rua os três oficiais de alfândega abrem a mala do jipe, entre o confuso Russo o casal percebe a palavra “importação” e puxam do passaporte para, mostrando os vários vistos da viagem, tentar explicar que nada era para importação, mas tudo para uso pessoal. Tendo em conta a quantidade era sempre um pouco difícil para os oficiais acreditar nesta conversa, e foi aqui que conheceram russo, “o gordo”. O plano dele era o habitual: intimidar, ameaçar, conseguir dinheiro. Avança decidido - dente de ouro posto em evidência pelo sorriso falso - para convencer Filipenka, Telmei e os oficiais, que até estavam a facilitar, que a carga tinha toda de ser inspeccionada e pesada. Telmei e Filipenka baixam a cabeça, voltam à sala e tentam demover o oficial doscanner, mas “o gordo” tinha, senão melhor retórica, definitivamente melhor Russo, e repete que segundo a lei têem direito a transportar apenas 35 quilos cada e que por cada quilo a mais têem de pagar quatro euros. Seguem para o jipe, Telmei murmurando entre dentes «Ele pensará que isto é um aeroporto?!». Descarregam todos os sacos e malas empilhando-os no chão enlameado da fronteira. “O gordo” vigiava os bens, aposto que para escolher algum para si, o seu colega fazia passar tudo doscanner para a balança e anotava metodicamente os valores num caderninho. Os sacos eram muitos e havia ainda os documentos do jipe, do cãozinho, câmbios e seguros, “o gordo” tudo acompanhava, ganância a empertigar-lhe os ombros largos. Tanto insistiu que conseguiu cansar os outros oficiais e escondeu o dente brilhante na linha seca dos lábios, obrigado a deixar partir o casal sem mais custos ou demoras.

Telmei e Filipenka seguem com rota marcada para Rostov para aí tomar o barco para a Turquia.

Passam as florestas de árvores finas e brancas.

Procuram quarto nos hotéis de estrada. Albergues sujos, com mau cheiro, camaratas partilhadas, sem casa de banho ou janela, quartos de chão plastificado, camas sem lençóis.

Oito graus negativos, passam a noite no jipe. Não visitam Samara, Saratov ou Volvogrado. A 300 quilómetros de Rostov, quando pela centésima vez telefonam para a Embaixada portuguesa na Rússia a pedir informações sobre o ferry que os levará à Turquia, depois de muita insistência nos pormenores percebem que não, não é em Rostov que podem tomar o ferry, mas em Sochi...

O jipe abranda em desalentado passo, encosta na berma da estrada, olham o visto de trânsito prestes a expirar «Mais 400 quilómetros de desvio para Sochi?», avançam em silêncio.

Numa curva da estrada, entre barracas de lata encontram um gaztinitza (hotel), entram. Seguem a loira pela escada em caracol. Um grupo de pessoas embriagadas corre a fazer festas a Ra, o cãozinho reage, desconfiado e nervoso. No quarto batem à porta, uma das russas traz para Ra uma mão cheia de cubos de açucar (eventualmente confundindo-o com um cavalo). Quer entrar, precisa de estar agarrada às paredes para não cair no chão, o que ainda assim acontece algumas vezes. Filipenka tenta educadamente mantê-la do lado de fora. Minutos mais tarde a mesma mulher volta, despida, enrolada numa toalha turca. Vem acompanhada por um homem mais velho, gordo, em camisola interior de alças, boxers e ligas de meias até ao joelho. O par é grotesco e a situação constrangedora. Janocas consegue com sucesso fechar a porta, à chave. Na manhã seguinte o casal ressacado serve-lhes o pequeno almoço de kefir e blinnys.

Seguem viagem, param para jantar numa banca de estrada, em linha com as barracas de chapa metálica. Entram na sala de paredes azuis, aquecida por feios tubos de gás. Filipenka tenta pedir algo para comerem mas fazem cara feia às palavras que ensaia na língua eslava. Desesperam. É o dono do local, de olhos e cabelos escuros, emigrado da Geórgia, que lhes dá as boas vindas, convida a sentar, lhes grelha deliciosa carne de vaca e serve cerveja e Nescafé.

Seguem viagem, estado de ânimo sombrio, como sempre acontecia com eles na Rússia.

O lobo cinzento



Lendas xamânicas vaticinam que um lobo cinzento virá devorar toda a Terra.

Nos lagos da Ásia Central reverberam os sons ritmados do cavalo de Temudjin na sua campanha contra a tribo Merkit. Podemos ouvir a sua voz cantando Boerte, a noiva raptada: "Ao anoitecer, não te encontrei, porém na minha alma, ecoa o teu canto. O meu coração é uma luz solitária na margem. Ah, bela amada, vou esperar-te toda a noite.". Podemos ouvir os suspiros lascivos do seu reencontro.

No coração do império do grande líder mongol, nas abandonadas margens do lago Balkash procuramos um sítio para dormir, um néon vermelho brilha “777”, vamos ver. O hotel foi remodelado à pouco, em paredes de contraplacado há pinturas berrantes e altos relevos, de esferovite! É indescritível. Mas nem pensamos duas vezes, desde que aceite o Ra... O jovem cazaque da recepção não quer aceitar, mas perante a oferta de mais uns tengs cede a ignorar que Ra entre pela porta dos fundos. Mas a porta é uma escada de incêndio, feita de grade larga, as patas de Ra enfiam-se nos degraus. Gane, não quer subir. Telmo sobe os dois andares com os 50 quilos de cão ao colo. E no quarto somos obrigados a ignorar o frio, os lençóis usados, as baratas, a banheira sem água quente, as caganitas de rato debaixo da cama. E ao jantar ignorar o cheiro da cozinha, o pegajoso das mesas, a cor surrada da loiça de plástico, o sabor da comida. O jipe fica guardado no armazém das traseiras, de manhã, enquanto carregamos a mala e passeamos Ra - sob o olhar de camionistas cazaques, em toalhas, vindos da sauna – invade-nos o cheiro de peles de carneiros acabados de esfolar que secam no exterior do hotel. O recepcionista vem despedir-se de nós, em blazer enodoado, deseja-nos sorte, acena sorrindo. Seguimos viagem.

Ao longo da estrada, de pequenas cabanas feitas de madeiras e plásticos saem cazaques gordinhos, em casacos de pêlo, exibindo orgulhosamente enormes peixes secos.

Avançamos pela estepe que recebeu a família de Gengis, expulsa do seu clã, entregue à esterilidade da terra; a estepe que exibe as estátuas, desenha as sombras dos exércitos do Grande Cão, a libertar a flecha no momento exacto do galope em que as quatro patas do cavalo o impulsionam no ar; a estepe que acolhe os acampamentos, as enormes manadas de cavalos que alimentam os exércitos com o sangue das suas feridas, os exércitos tão ferozes que tinham de ser amarrados; que na guerra cavalgavam ao vento enfrentando os arqueiros, avançando de boca aberta, babando de alegria. A estepe que Tchinghis Khaan estendeu do Mar Amarelo ao Mar Negro, devorando quase toda a terra. A estepe que guarda o seu túmulo, que amortalhou todos os que assistiram ao seu enterro e pudessem identificar a sua sepultura, que permanece secreta.

Seguimos para Norte, Karaganda e depois Kostanay. Neva. Nas enlameadas cidades cazaques tudo tem a cor da ferrugem, tudo é favorecido pelo branco da neve. Levamos o jipe a um reconhecimento de água. Basta um dia para o pó da estepe devorar a pintura, os vidros, a matrícula.

Vingamo-nos dos sacrifícios e aproveitamos os contrastes, nas riquíssimas cidades cazaques (nunca vimos tantos Land Cruiser juntos!) hospedamo-nos em hotel de luxo e fazemos as saunas necessárias para recuperar coragem e seguir para a fronteira com a Rússia. É desoladora, rodeada de erva seca e amarelada, algumas barracas, velhos carros abandonados. No control de passaporte aguardamos entre fila de cazaques.Olham-nos intrigados, olham o passaporte surpreendidos. Talvez porque sorrio para eles sorriem para mim e perguntam:«Kasakhstan normali?», se acho o Cazaquistão bom, agradável. Não, não acho. Nem bom, nem agradável e muito menos normal. Mas continuo a sorrir: «Da, normali.», entreolham-se um segundo e rebentam a rir, em coro inesperado, estridente e triste. Claro, nem eles acreditam, não há nada de normal ali.

Na alfândega seguimos o oficial de fronteira, escada de madeira suja acima, até ao gabinete do oficial bem fardado que nos explica que porque vimos da«China onde como se sabe há muitas drogas»temos de descarregar e scannar toda a nossa carga...

A China!... tivéssemos nós a arte de Temudjin, incendiá-la de seus próprios pássaros.

«Como?!», “aqueles tipos controlam até os telefonemas nas mercearias! E nós já atravessámos todo o Cazaquistão, isto é a fronteira de saída!” - pensamos, mas não dizemos. Começamos o doloroso descarregar do jipe, o oficial acompanha o processo e quando vê as quatro caixas plásticas, grandes, transparentes, onde transporto os cosméticos - sim, eu sei que segundo Genevieve Antoine Dariaux «Hoje em dia não faz muito sentido viajar-se com uma grande quantidade de produtos de beleza, a não ser que se parta numa viagem muito longa para um país primitivo que ainda não tenha sido descoberto por Elizabeth Arden.», mas é esse o caso e é conversa que não tento ter com o oficial de fronteira que pergunta «Cosmetic?», aceno. Os olhos dele abrem-se em censura e desenrola em Cazaque cerrado uma história qualquer sobre eu dever ser obrigada a ir atrás do jipe com esta particular carga às costas. A expressão é dura, ou não brinca ou o humor é duvidoso. O oficial atrás do scanner fixa o écran do computador e parece ter visto numa das minhas malas algo que lhe chama a atenção. Já o imagino a remexer entre a minha roupa interior quando um falha de energia faz o sistema ir a baixo e a ambos os oficiais perder o fôlego para esta empresa de procura ao suborno. Quero dizer, às drogas!

Depois de seis horas na fronteira – mas a estes tempos de passagem já nem damos importância a estas demoras - voltamos a pôr tudo no jipe, sem um único item confiscado, o que muito me surpreende. E claro que se drogas trouxéssemos, drogas levaríamos.

A sorte sorriu-nos, mas avançamos para a Rússia, e já sabemos que quando se viaja assim, sozinho, por terra, onde os quilómetros não podem ser feitos senão por nossa mão, emoções de satisfação e alívio são raras.

E efémeras.