Sunday, May 3, 2015

Que tudo corra bem


Anoiteceu. Quando era muito pequena alguém me disse que temos direito a um desejo por dia. Todos nós, todos os dias. Ao anoitecer basta procurar no céu a primeira estrela, Vénus, e, dizendo a fórmula mágica - “Primeira estrela que eu vejo, realiza o meu desejo” - ter direito à atenção dos deuses. Na casa da minha mãe o lugar da estrela era emoldurado pela janela do meu quarto, ficava muitas vezes ali, sentada na janela, a namorar a visão, a conversar comigo, a pedir desejos. Durante muito tempo isto sossegou-me. Estou longe de casa, estes pensamentos acalmam o meu espírito ansioso, olho o céu, mas aqui ele é diferente. É Dezembro, estamos no Sudão. O nome, bilad as-sudaan, significa literalmente “o país dos negros”, e aqui em África as questões da cor da pele são muito importantes. Ao sol, a pele dos sudaneses brilha, o reflexo da luz na tez humedecida pelo suor cria pontos de luz branca que marcam as feições nas maçãs do rosto e no nariz. São altíssimos e esguios os corpos cobertos de túnicas brancas, nos homens, de véus de cores nas mulheres. A antiga Núbia foi uma civilização admirada por muitos séculos, mas agora não é assim. Sobre o Sudão todos nós ouvimos histórias, todos vimos imagens na televisão. Dos conflitos tribais, dos confrontos entre grupos rebeldes, das guerras pelo petróleo, das chamadas disputas religiosas. Agora que estou aqui as histórias estão nos olhos vermelhos dos rapazes que seguram as kalashnikov. No check point mandam-nos parar, os rapazes em fardas coçadas são magros e nervosos, não têem mais de 14 anos, os olhos são vermelhos, lacrimejantes, parados - das drogas, do pó do deserto, do choro, do vazio. Pedem-nos documentos, podemos seguir. Pela “não-estrada” do Norte do Sudão, por entre a tempestade de areia, literalmente a inventar o caminho. Contam-nos que num destes bloqueios de estrada, há duas semanas atrás, uma voluntária britânica foi morta, os militares disparavam para o ar e ela foi atingida por uma bala perdida. Contam-nos que há meses atrás um casal de suiços em viagem foi assediado por piratas somalis na costa do mar vermelho, chegados a terra, o coração do homem de 35 anos não aguentou, morreu nesta mesma travessia do Sahara, a mulher, grávida de sete meses, negociou com sudaneses o transporte do corpo para a capital, mulher e corpo de boleia nas traseiras de uma pick up, em solavancos e nuvens de poeira, até Cartum. Aqui acreditam na protecção dos djins e quando um menino nasce são realizadas elaboradas cerimónias onde os anciãos da tribo decidem o seu futuro. O futuro. Estarão ainda os djins, Deus ou Alá de olhos postos aqui? As histórias são de mães que carregam nos braços filhos mortos, recusando-se a enterrá-los. De pais e filhos, mortos pela mesma bala. De cubatas usadas como fogueira para queimar aqueles que ainda ontem eram os amigos, os familiares, os irmãos. Aqui, os que disparam e os que são atingidos são da mesma tribo, da mesma crença, partilharam o mesmo kebab e a mesma sombra - mas hoje tudo mudou, tudo está diferente. O país tem histórias de sangue e morte, para contar. O deserto é pálido e cinza. Dunas rochosas e duras, com desenhos de areias macias, claras. Esta que atravessamos foi em tempos chamada “a terra do ouro”. Ouro escondido na areia, no ar, nos rios, nos elementos. Mas não vimos ouro. Não vimos nada. Até as poucas aldeias estão desertas. Em Wadi Halfa as histórias estão nos povos Ababda, da tribo Beja, os “filhos de djins”, os guias do deserto Núbio, os que não são amigáveis com estrangeiros. No nosso mapa só há um nome na grande mancha de areira, Dongola, a capital do Norte. Mas passamos outros lugares, paramos, procuramos dormida, comida, orientação. Encontramos curiosidade e espanto. Vemos duas crianças descalças, com três cortes horizontais no rosto, tradicionais das tribos Manasir. Vemos as tatuagens de Henna no rosto das bonitas mulheres dos honestos Núbios. Sentimos o aperto de mão firme dos bravos, generosos e hospitaleiros Shaiqiyah, que nos convidam para ficar em sua casa. Vemos os corpos subnutridos das crianças que, de panos imundos nas mãos, se oferecem para engraxar sapatos ou lavar os carros. Vemos as mulheres envoltas em burcas azuis, os homem de turbante branco. Vemos os poucos campos cultivados junto ao Nilo pelos Mahas. E as sedentas manadas dos Nuba. No Sudão não há turistas, não há estrangeiros a passear. Sentimo-nos exploradores em terras desconhecidas. Temos a doce sensação da constante descoberta, nas mais pequenas coisas, cada experiência é a primeira; cada passo falhado, cada conversa tentada, cada olhar fugido. Como se não soubéssemos nada, como se inventássemos tudo. Pela primeira vez. Os locais olham o jipe e mal paramos mil mãos tentam abrir as portas, mil olhos se colam aos vidros. Não queremos chamar a atenção, mas é impossível. O nosso cão agita-se, rosna. Olham-me olhares secos. Avançamos. De vez em quando passa por nós uma pick up Toyota, perguntam-nos o nosso destino e até propõem que sigamos em caravana, e nós tentamos. O nosso jipe luxuoso solta “ais” a cada duna mal subida, a cada pedregulho mal pisado. Os condutores conhecem de cor este terreno impraticável, voam, desaparecem em saltos e nuvens de pó. A secura do ar do deserto abre-me fissuras nos lábios e encrespa-me o cabelo. Avançamos sozinhos, a olhar a areia, a olhar nervosamente o Sol, já enorme, no horizonte. E nós aqui, em nenhures. A sensação de ver no mapa a grande mancha sem nada e de a sentir de facto, à nossa volta, é desconcertante. A sensação de depender de uma pequena bússola que seguro apertada estre os dedos, também. Avançamos pelo nada. Anoitece. Há tempestade de areia mas por cima de mim brilha uma estrela, o céu aqui é diferente, não sei se se trata de Vénus ou da Estrela dos Viajantes, a estrela do Norte, Ísis, não sei, mas é a primeira estrela que vi aparecer no céu. Há uma espécie de nostalgia em mim, o dia acabou, ergo os olhos, canto a fórmula, peço só que tudo corra bem.

Inshallah!


Há 15 dias que vivemos no Cairo a tentar reunir, como talismãs, as licenças e vistos para seguir a nossa viagem e atravessar por terra África. Com arte e feitiçaria egípcia, entre panos mortalha de múmias e tinturas de sangue sagrado, com a proteção de sibilas e feiticeiras, tentamos. É duro o caminho em África, mesmo antes de começar. Na nossa rota há um país impossível de evitar. Grandes países, grandes problemas - Sudão. O taxi leva-nos da rua das Pirâmides até à baixa. Ao lado de uma bomba de gasolina, está a pequena, suja e pobre Embaixada do Sudão. Não há guardas bem fardados à porta, portões brilhantes, parque onde é proibido estacionar devido às ameaças de bomba. Nada. Nada mais que um esconço de dois andares, duas portas de chapa metálica e um amontoado de gente. Alguns parecem dormir aqui há vários dias. Aproximamo-nos segurando com confiança o cartão de visita de Adil Hussein Sharfi o Ministro Plenipotenciário, que nos deu o nosso Embaixador. Com dificuldade conseguimos chegar à porta, que é fechada por um gordo sudanês em fato de tyrilene. Tentamos o nosso melhor árabe e estendemos o cartãozinho, conseguimos que telefone. Não sabemos para onde, claro, pode ser a chamar a polícia, mas um telefonema é alguma coisa. Um homem de jellabiya branca pede que o sigamos. Subimos, passamos vários locais de oração; sujas carpetes verdes e chinelos abandonados por perto. O Ministro recebe-nos em fato e gravata impecáveis, oferece-nos karkadé (chá de hibisco) e contamos a nossa história. Ou quase, dizemos que a nossa vontade de atravessar o Sudão não é só geográfica e circunstancial, não! é genuíno interesse em tomar contacto com a cultura. Confesso que devido às notícias de guerra e conflitos, de atravessar o Sudão temos medo, e de contactar com as populações, pavor! E talvez por isto, por ser além fronteiras esta a imagem do Sudão, talvez por querer alterá-la Sharfi seja tão atencioso connosco. - Querem visitar o meu país? Sim, vão adorar! É um país lindo, de gente boa. Mas... estão habituados a viajar por terra em África? - Bom... sim, aqui no Egipto e... - Não! Aqui não é África! Ah!Ah! aqui é bom, muito dinheiro. - ... Pois... nós não temos mapa mas... - Ah! Ah! Mapas, sim – continua no seu riso aberto, grave – No Sudão não há estrada, não há placas! Mapa para quê? Em África sabe como viajamos? Perguntamos num lugar como se vai para o outro. - Então de Wadi Halfa vamos para...? - Não, quando chegarem a Wadi não sigam o deserto, sozinhos vão perder-se, é muito perigoso. Esperem pelo comboio para Cartum, leva o jipe também. De Cartum sigam sempre para Sudeste e hão-de chegar à Assubia, não se enganem, não sigam para Sul. - Mas nós estamos habituados a países difíceis, a estradas más, temos tempo... - Não, não é isso amigos - matam pessoas. Os corpos são tantos que os atiram para o Nilo, as águas estão contaminadas... De Juba para baixo é terreno esquecido por Alá. Silencia-se em nós o espírito aventureiro. De alma e plano abalado, escutamos: - De Cartum seguem para a Assubia, Abissínia, Etiópia. Etiópia está nas notícias, com guerra reacesa com a Somália... Começo a pensar onde poderei encontrar saliva de reis, cabelos de albino, unhas de chefes tribais, carne de virgem, garras de leão, pele de crocodilo, sementes de plantas venenosas, dentes de cobra e ossos de mortos. Para o talismã! No gabinete de Sharfi preenchemos os formulários que são enviados para Cartum, - Agora esperamos pela resposta. Para nós, pela sentença. Dependemos deste visto para seguir viagem! Fazemos muitas visitas à Embaixada, pelo caminho repetimos a Osíris a fórmula mágica: «Não matei homens. Contentei o deus com aquilo que ele ama. Dei pão aos famintos, água aos sedentos, roupa aos nus e condução para os que não tinham barco. Salvai-me, protegei-me, e não testemunheis contra mim perante o grande deus! Tenho a boca pura e as mãos puras; Sou um a quem dizem: “bem-vindo!”, quando me vêem.» (Livro dos mortos do Antigo Egipto) O porteiro do fato de tyrilene já nos conhece, somos recebidos pelo ministro de imediato e convidados a sentar e a tomar chá, - Talvez amanhã, Inshallah (se deus quiser). Esperamos. Telefonamos para a Embaixada da Arábia Saudita, podemos seguir de ferry para Jedah, e aí tomar outro até Porto Sudão, no mapa parece possível. Estamos no último mês do calendário islâmico, o mês da Al-hajj, a peregrinação a Meca, há cerca de um milhão e duzentos mil peregrinos, a fazer esta viagem com devoção... Da Embaixada confirmam, impossível, para não-muçulmanos. E mais vezes visitamos Sharfi, onde aguardamos o final da primeira oração do dia, e da segunda... - Talvez amanhã, inshallah. E se formos por mar, com o jipe num contentor? - Fazem o trajecto? E levam passageiros? - Não! Mas... vou ver – Sim, o capitão aceita levar-vos, mas... são 30 dias de viagem, por mar... os barcos são preparados para a tripulação, aguentam? Mais uma vez vamos à Embaixada, preparados para ouvir a máxima de que isto dos vistos só Deus sabe. - Parece que não desistem! Querem mesmo ir? - É só atravessar, não ficamos muito tempo - suplicamos nós. Ele ri-se, divertido. Continua: - Bebam mais karcadé. Bem, eu sou amigo de um grande homem do Sudão, Abuel Gassim Gor. É professor de teatro na universidade de Cartum, talvez possa ajudar - faz um telefonema, fala em árabe, sorri, gargalha, passa-nos o telefone, - Sim, claro, conferência de “Arte para Paz” sim, sim, nós podemos! Enviamos o mail ainda hoje. - corremos até ao internet café mais próximo, - Não acabou o seu karcadé! Agora basta aguardar que Gor nos responda com o convite. Esperamos. Um dia. Dois dias. Sharfi fez magia, recebemos o convite! Assim protegidos basta a visão pura do papel branco decorado com a magia dos caracteres árabes para todas as portas se abrirem para nós. Na Embaixada, na fronteira, no control policial, no juízo final. De amuleto junto ao coração seguimos o nosso caminho, no nosso 103º dia de viagem, a 150USD por cada visto (!) temos autorização para o Sudão! Coragem, os deuses estão connosco e Ísis, a boa estrela, protege-nos!

O grande mar de areia


Em Sakara visito a pirâmide de Djoser, converso com Telmo, mas logo que monto o camelo que nos leva a ver os túmulos e avisto o Sahara deixo de o ouvir, - Acontece que... Filipa? Mas é o guia que lhe responde, - Ela nunca viu pois não? Espere, não vale a pena falar, o deserto não gosta de palavras. A primeira vez que piso o que os egípcios chamam o grande mar de areia apetece-me pedir que liguem as luzes do estúdio e desliguem os efeitos especiais. É falso, tenho a certeza! Aos primeiros passos, a enorme extensão de nada amplifica todos os sons. Como se estivesse numa caixa, como se o chão fosse oco debaixo de mim. Como num cenário. O silêncio é absoluto. O ar é denso e pesado. - Gostava de um dia atravessar o deserto todo. Disse então. - Cuidado. Tem cuidado com o que pedes aos deuses, eles podem conceder-to. Falo baixinho, com cuidado e respeito, não quero perturbar as filmagens. Imagino o camelo num desmaio, ou o carro em que viajamos sem gasóleo, a garrafa sem água, os pacotes sem bolachas... o que faríamos? Estamos no reino do deus Set, o duro e estéril reino da morte. Espaço de monstros-serpente metamorfoseados em mulher, que seduzem os viajantes e os devoram. Das bruxas que procuram cadáveres, que os decapitam e carregam na boca as suas cabeças, como animais. Sinto o cheiro seco a pó quente. Invade-me as narinas, desce a custo até ao peito, onde descansa, tirando-me o fôlego. Aqui temem-se as tempestades, crendo na intenção malévola do soprar do vento sul: repentino, quente, destruidor. Receiam-se os cantos das dunas; os sons da areia tocada pelo vento - ou serão batuques de seres subterrâneos que vivem sob elas, o que ouvimos? Tudo começou quando seguíamos a estrada que atravessa, Sahara adentro, o Egipto. Estrada que acompanha o deserto e é acompanhada pelo Nilo. Ou melhor, tudo começou quando... não sei. Nas nossas rotas já não sei onde começa este deserto. Nas planícies áridas da Turquia? No vermelho Wadi Rum da Jordânia? Bom, de certeza no Sinai, onde fica a mística montanha de Moisés. Por terra, de jipe, atravessamos o Sahara. A palavra não voltará a significar o mesmo para mim. A travessia é uma experiência mágica. E dura. No mapa mundo há enormes manchas brancas, feitas de nada. O Sahara é uma delas, este que é chamado o Grande Deserto é o maior do mundo, ocupa quase todo o Norte de África. Sempre quis visitá-lo. Mas visto de dentro o deserto não é o “nada”, é cheio. De homens, de lendas, de animais letais. A visão poética pode ser uma visão de inferno e demónios. Cinco minutos de caminhada, em Agosto, no deserto Ocidental do Egipto são o suficiente para sofrer alucinações e vislumbrar uma miragem. O bastante para sentir como é fácil nos perdermos por aqui, como é fatal o caminho errante no espaço dos djins; os espíritos da terra, do sol, do vento, das raras plantas sobreviventes. É perigosa a paisagem das areias douradas, puras, femininas. A casa do vento, masculino, irascível, violador. Acompanhamos o deserto até Assuão, entramos no reino de Anqet, a amante da Núbia, a que abraça as águas do rio Nilo, a deusa fértil e amorosa de corpo de gazela. Aqui vivemos a sensação da última fronteira, o limite com o desconhecido. Entramos no terreno das paixões e dos feitiços, dos deslumbramentos e dos mistérios, das visões. O lugar de prisão e da fuga; do domínio e da submissão. Muitas vezes visitei Assuão; de avião, de comboio, de cruzeiro no Nilo, e regressei. Queimei sob o sol forte do Sul do Egipto; bebi chá gelado na esplanada do hotel de Agatha Christie, o Old Cataract; atravessei de Feluca o Nilo - a falta de vento transforma o passeio de 20 minutos em duas horas ao som de palmas e notas de música, arranhadas pelos nossos jovens barqueiros; visitei nas ilhas os templos; nas margens os túmulos. Dormi seis noites no hotel sobre a água, subindo e descendo o rio, vivendo o romance da viagem de César e Cleópatra. E regressei a casa, com histórias e souvenirs. Regressei. Agora visito-a para seguir o caminho dos grãos de areia. A partir daqui já não há cidades senão as das lendas que falam de construções em ouro e mármore negro. Cidades de cultos misteriosos e habitantes estranhos. Cidades secretas, enfeitiçadas, perdidas ou por descobrir. Cidades criadas na fertilidade surpreendente dos óasis. Com praças de estátuas que falam sob a luz do sol, encantatórias. Com portões de esculturas assassinas; de homens - como viúvas-negras; de estrangeiros - como esfinges carrascos. Para atravessar o deserto sigo para a água. Para o Nilo que cria o lago que fendeu as dunas, que desalojou os núbios, que prendeu os crocodilos, que salva a vida mantendo o Nilómetro na linha, que alimenta o Egipto. Não me parece tão doce o sumo de manga, tão calma a água, tão alegre a dança ou tão saboroso o buffet onde num pequeno hotel de cristãos comemoramos o Natal. Parecem lamentos os sons de Assuão, quando peço a protecção de Anqet, de todos deuses, dos reis mortos, e dos vivos na eternidade. Na rua uma criança que vende papiros passa-me para a mão uma pedra pintada, em segredo, como se me oferecesse um tesouro desenterrado do túmulo do faraó, «For you madam, just for you. Is secret from me. No money, my gift.» Aceito, no egipto tudo é mágico. Guardo a pedra, o amuleto antigo, forjado pelas mãos secas dos egípcios de hoje. Guardo o escaravelho turquesa e presto culto à arte e crenças de outros tempos. Não sei se este objecto tem Ka, alma, mas não duvido. Levei-o pelo deserto, nos meus sacos; entre pedras de Rum, seixos do mar negro e lamas do mar morto; entre medalhas beduínas e corujas de bronze gregas; olhos de cabra turcos e alhos romenos; o Masbahan cazaque e as moedas chinesas. Protegeu-me deserto dentro, África dentro, até hoje, até aqui, enquanto escrevo este texto. A pedrinha egípcia em forma de escaravelho salvou-me. Alah! Mas hoje é dia 25 de Dezembro, o nosso 116º dia de viagem, estamos em Assuão, ainda não sei isso. Amanhã entramos num dos mais agrestes ambientes do mundo, regressaremos?

A santa que pernoita


Na terra onde nasci, em certa altura do ano, ao anoitecer, tocavam à campainha: - Joana Filipa, vê quem é! - vou abrir, na soleira da porta uma pessoa (um vizinho, mas que na minha autista adolescência desconhecia) segura nos braços, em desiquilíbrio e com algum esforço, um oratório. Uma grande caixa de madeira dentro da qual repousa, de olhar doce e ausente e de mãos em oração, uma santa. - É só para entregar. – foge, com orgulho de dever cumprido e receio de nova prova. - Mãe! - com dificuldade vou até à cozinha – que é isto? - Então não vês que é uma santa? Põe na sala. Poiso-a, sem fé mas com cuidado, na sala de jantar, aquele sítio da casa onde se guardam os tesouros: as toalhas de linho, os serviços de porcelana Vista Alegre, os tapetes de Arraiolos, o vinho do Porto envelhecido. E onde, quase por tradição, ninguém entra. As portas da sala são de vidro e sempre que venho do meu quarto vejo na sala, só, a santa. A santa que (por razão bem misteriosa para mim) aqui pernoita. Visito o lugar de ninguém. Esta imagem de Catarina tem à volta umas luzinhas, semelhantes aquelas com que abraçamos as árvores que decoram o Natal. Ligo a ficha, acendem, piscam. Era mesmo capaz de lhe acender uma vela, ou um pauzinho de incenso (não fosse ele demasiado profano para ser aceite lá na casa da minha mãe). Não é a fé que me faz dedicar o tempo, os olhos ou os joelhos aos símbolos ou lugares sagrados, é aquela espécie de energia silenciosa, a maneira como o ar parece mais pesado, mais... No santuário de Fátima, no Vaticano, no templo de Apolo em Delfos, na Mesquita Azul na Turquia, ou no monte Sinai no Egipto, o ar tem vida. Na província do Sinai estamos em terreno sagrado. Anoiteceu já, seguimos viagem. Sem fé, mas com curiosidade, visito o sagrado. Sagrado para cristãos, judeus e muçulmanos. Estamos no sopé da montanha mística, Jebel Musa, do monte de Moisés, da Sarça Ardente, das tábuas da lei. O lugar está pontilhado de locais de culto e de tesouros religiosos. Avançamos, para os turistas a subida é calculada em seis horas, chegamos tarde. Gostamos de ir sozinhos, resistimos aos guias e às ofertas de burros dos beduínos. A subida é escarpada, por carreiro pedregoso, íngreme e poeirento, aqui e ali lugares de repouso, onde mulheres vendem cafés e chocolates, vamos atrasados, não paramos. Está escuro. Num dos caminhos estreitos avançamos devagar, ouvimos sons, sentimos movimento, mas não vemos nada. Serão pessoas? Avançamos lentamente, sinto algo grande perto de mim, sinto um cheiro estranho, um bafo... e uma cabeçada no ombro! Camelos. Dormem camelos nas suas posições próprias, no seu resmungar cavo, no seu mastigar lento. Mais uma cabeçada, OK, já percebi! perturbámos este dormitório. Já perto do topo Telmo vacila, - Então? Não vamos parar agora. - Mas ainda há 600 degraus! Descansamos aqui. - Assim não tem graça! - empurro-o – se as velhinhas italianas conseguiram tu não consegues? - Mas elas iam de camelo! - Moisés conseguiu! - Ele demorou 40 anos! - Ah! não sejas maricas! Vamos atrasados no Sikket Saydna Musa, o caminho de Moisés. Subimos. Subimos. A custo, subimos. Os últimos degraus são os mais difíceis, começamos a pensar que isto é um bocado palerma, vimos ver uma coisa que acontece todos os dias, bolas! Mas subimos com um objectivo, viemos de longe, (e de jipe!) para este prazer, é por isso que escalamos 2288m, de noite. Chegamos ao topo, mas no topo não há nada que cause espanto ou nos extasie. A escarpa acabou, não podemos subir mais, destas rochas avistamos mais rochas, de formas redondas, polidas. E mais nada. Há uma pequena capela da Santíssima Trindade onde se acredita que está a Sarça Ardente. Há muitas pessoas, enrolados em sacos cama ou sentados em cadeirinhas desdobráveis. Meia dúzia de ingleses têem a câmara de filmar preparada, a luz vermelha pisca, em modo de pausa. Passam os minutos, corre uma aragem. Os russos são barulhentos, os alemães trocam barritas energéticas. Um casal fixa, silencioso, o horizonte. Dois japoneses, descalços, mimam posições Thai Chi. Há uma ténue ameaça de claridade, daquele tipo que não se sabe de onde vem. Esta claridade suave, aos poucos, ocupa o espaço da escuridão. Os rochedos cinza mudam de cor, os rostos e os cabelos dos visitantes das paisagens deslumbrantes são visíveis agora, em tons frios. Olho para baixo por um minuto, procurando com cuidado a distância dos meus pés para o abismo, levanto os olhos, mesmo a tempo de ver o milagre. Os primeiros raios parecem empurrar as montanhas criando um espaço de luz... Que dizer? Saudamos o sol. Na descida tomamos um café, comemos um chocolate. Descemos o Monte Sinai. No sopé do monte está o Mosteiro de Santa Catarina. O lugar conta a história de Catarina de Alexandria, a virtuosa que aceita ser desposada, mas, ciente das suas mil qualidades, impõe aos pais condição; que o noivo seja merecedor das suas pérolas, ultrapassando-a em tudo. Visita os sábios, é visitada por visões da família celestial. Procura a beleza, a juventude, recebe a revelação, converte-se à religião da virgem que deu à luz. O mosteiro guarda as relíquias de Santa Catarina, que, conta a lenda, depois de muitos martírios foi trazida por anjos até aqui, ao Monte Sinai. Na zona em que nasci, dada a milagres, dizem as lendas que terá aparecido na serra, dentro de um tronco de árvore, uma imagem de Santa Catarina. No local foi construída uma igreja e a santa é aí venerada desde então. Esta santa pernoitou muitas vezes em minha casa, posso pernoitar por aqui? É noite. Avançamos. À semelhança da Jordânia o deserto é vigiado por militares, assustam-nos os enormes projectores que varrem a paisagem. Assustam-nos os bloqueios de estrada. Aqui basta um ou dois bidons, uma pequena cabana, duas cadeiras, um rádio de comunicações e dois soldados. - Stop, para onde? - Cairo. – alguns minutos de ruidosa comunicação com o próximo controle e removem o bidon, podemos seguir. A estrada está calma, nem um veículo passa por nós. 512 km em sete horas, à meia-noite chegamos ao Cairo.

Cairo, o triunfante


Em Dezembro estamos no Cairo. A cidade das mesquitas, das pirâmides, do estreito Nilo, do suq, dos hotéis luxuosos, do trânsito caótico, dos odores, dos ruídos, das cores, das danças, dos mortos. Das mesquitas das relíquias, de Al-Azhar centro das madrassas do mundo árabe. Do Nilo das discotecas flutuantes. Onde ao anoitecer se enfileiram as gentes, sentadas em silêncio em pequenos grupos. Chegando ao centro do Nilo, acendem-se as luzes de festa, toca a música dos ritmos estridentes, movem-se os corpos em desafios e cortejamentos. Dos Dervishes. Das danças dos homens de tez escura. Núbios feitos de tronco e de saias, equilibrados em pés rápidos, olhos para o céu, rodopios vertiginosos, saias longas em camadas, que se levantam e descem como uma ampulheta colorida. Dos ventres que se escondem e se revelam em ritmos que fazem encaracolar os dedos e desenrolar os braços, ondular a coluna e sassaricar a anca, soltar os peitos e fazer viajar o olhar. Do medieval suq das mil bancas. Das lojas/ casa, onde antes de acertar o preço somos recebidos pelos primos, beijamos os filhos, vemos as fotografias das mães, afagamos os gatos de estimação, conhecemos os comerciantes da concorrência e ao sabor de muito chá experimentamos tudo. O suq dos móveis, dos candeeiros, das especiarias, dos fatos de danças do ventre, dos lenços, das burqas, dos chás, das babuskas, das jóias de prata, das cebolas, dos tapetes, do pão achatado, dos perfumes, dos mapas, dos papiros, das velas. Das esfinge pisa-papéis, dos Anúbis caneta, das t-shirt Cleópatra, dos cinzeiros Ramsés. Das caixas de madre-pérola, dos jarros de vidro martelado, das pirâmides coloridas... O bazar dos 1001 tesouros, onde a pergunta «do you have...» é sempre interrompida por «yes!». Das lojas misteriosas - com uma secretária, uma cadeira, um homem atrás da secretária, paredes por pintar, prateleiras vazias, «welcome, welcome!» Mas que vendem eles? Dos chás que atravessam a rua, em tabuleiros sujos, nas mãos de homens de gyllaba, para levar ao polícia, ao guarda, ao senhor que espera no multibanco, ao dono da loja em frente. Do café centenário, sempre aberto. Dos espelhos tomadores de almas de um século. Dos chás doces de karkadé quente, dos cafés espessos da turquia. Das mesas repletas de homens. Dos grupos de mulheres rebeldes, de unhas vermelhas, olhos negros e véus claros. Do eterno trânsito, de ruído contínuo. Dos maiores perigos no Egipto - o de atravessar a estrada. Da condução livre - para conduzir não é preciso ter carta de condução, apenas possuir um carro. Da condução escura - acreditam os egípcios que os faróis cegam os olhos dos condutores, avançam de luzes apagadas, acendendo-as, em sustos cardíacos, quando passam por outro veículo. Dos odores da shisha que fumamos sentados nos sofás em frente ao Nilo. Do cheiros secos dos incensos, dos doces dos chás. Do cheiro do cobre fundido nas ruas. Dos odores das margens sujas do Nilo, dos homens acocorados a sujar a beira da estrada. Dos excrementos de pessoas e animais. Dos cavalos magros, dos burros, dos camelos, dos gatos. Das peles curtidas. Do lixo. Do cheiro pesado e seco do ar poluído. Dos sons da contínua oração, da música pop religiosa, da música egípcia de voz masculina alongada e de coros femininos. Das guitarras e cítaras a acompanhar o cantar das bocas das mulheres amordaçadas nos panos. Dos gritos das crianças. Das buzinas dos táxis Peugeot 504 velhíssimos. Dos cascos dos cavalos em compasso com o chiar das rodas de ferro das caleches. Dos vendedores ambulantes, dos guias turísticos, dos zeladores dos templos nos seus constantes «Habibi, habibi!! Aqui, aqui!» Das cores empasteladas da areia, do asfalto gasto. Dos homens de túnicas cor branco poeira, cinza fumo, castanho terra. Dos pés escuros cobertos de pó. Das burqas negras, dos lenços verde islão. Do vermelho, do amarelo, do dourado, do azul, do prateado, do brilho das lantejolas das dançarinas, das actrizes, dos músicos, das guitarras, do interior dos carros, dos telemóveis, das montras, das publicidades, das caleches, dos arreios dos cavalos. Das paisagens encantatórias, da visão de deserto rodeando a cidade. Do Cairo como uma ilha de betão num mar de areia. Do pesado policiamento das ruas. Da polícia de turismo, de trânsito, do exército. Por todo o lado; sentados debaixo das árvores, a dormir nas pick up, encostados aos portões dos museus, sentados atrás da secretária na beira da estrada. Forças armadas em fardas sujas, desalinhados, subnutridos. Dos hotéis de luxo. Das cama super king, dos bufets principescos, dos pequenos almoços intermináveis, das casas de banho aquecidas e arrefecidas em turcos e mármores. Dos banhos perfumados, das cortinas voluptosas, dos sofás macios. Dos lobby amplos, dos bons tapetes debaixo dos pés, dos roupões de seda no corpo, dos linhos suaves na almofada, das escadarias decoradas. Dos night clubs sofisticados. Da cidade dos mortos, na outra margem do Nilo. Do sol que se põe a Oeste. Do lado Leste a vida, do outro lado, a morte. Ninguém vive entre os mortos. Antes era assim. O Cairo, a cidade triunfante, cresceu. Agora, entre os cemitérios e o culto da além-vida vivem os bairros de lixo. Da cidade dos enigmas devoradores de homens, da Esfinge guardiã. Da cidade das descobertas, onde não há desilusões. Da grande pirâmide que visitámos sozinhos - em ano de atentados terroristas - onde subimos de cócoras os túneis e depois de gatas o labirinto. Onde galgámos os degraus e chegámos, sós, ao coração do tesouro. Das pirâmides dos momentos mágicos. Do silêncio. Sentimos a massa de pedra e areia à nossa volta, debaixo, por cima de nós. Sentimos no corpo a memória do caminho estreito que fizémos até aqui, entre paredes húmidas, nos degraus apenas improvisados. As câmaras abertas que atravessámos, e as câmaras secretas, escuras, por explorar, que não sabemos onde levam. Ouvimos ruído, parecem passos; aproximam-se. E outro som, parece o da respiração, ofegante. E vemos um vulto, parece o guarda, «não sabia que estavam aqui, vamos fechar!»

Os encantadores


Há histórias de num amanhecer de nevoeiro ele avançar pela cacimba, de mão aberta, e encontrar a língua húmida e o bafo quente de um cavalo branco. Há histórias de cavalos lusitanos, inteiros, rebeldes e temperamentais - o mesmo cavalo que se recusava a ser montando, que estacava imóvel durante horas; que deitava ao chão homens feitos – o seguirem como cachorros, a mastigar pachorrentamente o seu velho chapéu de palha. Cavalos perdidos nas montanhas do Gerês, nas planícies alentejanas, nos Alpes da Áustria, na estepe cazaque ou no deserto da Jordânia vêm conversar-lhe. Coisas só deles, de outros tempos, de outras vidas, de quando- «Allah tomou uma mão cheia de El Marees, o vento Sul, e bafejando-o criou o cavalo, "Eu criei-te. Para que sejas único terás o olhar da águia, a coragem do leão e a velocidade da pantera. Do elefante dou-te a memória, do tigre a força, da gazela a elegância. Os teus cascos terão a dureza do sílex e o teu pêlo a maciez da plumagem da pomba. Irás saltar mais do que o gamo, e terás do lobo o faro. Serão teus à noite os olhos do leopardo, e orientar-te-às como o falcão, que regressa sempre a casa. Serás incansável como o camelo, e fiel como o cão! E para sempre te dou a beleza da rainha e a magestade do rei. Hossane, que a doçura da vitória repouse sobre os teus olhos. Que carregues no teu dorso tesouros. Que a tua sela seja o meu templo. Que voes sem possuir asas e conquistes sem o uso de nenhuma espada.» De quando o cavalo correu selvagem pelo deserto. De quando o destino do Árabe foi tecido na história do Ocidente. Num entardecer de Verão no deserto da Jordânia, nos “Estábulos do Rei”, encontra os cavalos. São encontros, ou, correndo o risco de ser mística, reencontros. Escolhemos dois cavalos, ele monta a égua branca de crina entrançada, Shakira(!?). À saída do estábulo conversam, ela em relinchos, saltos, volteios, resistências e cedências, como jogos amorosos. Ele concentrado, transpirado, testa-a, fala-lhe naquela língua só deles, puxa-lhe as rédeas, bate-a nos flancos. Ela rodopia, resfolega, coceia, galopa, trota e imobiliza-se. Passam os minutos. Namoram. Ele já nem usa as rédeas ou os estribos, ela move-se, suave, ao ritmo da voz dele, sem hesitações, sem dúvidas. Ele fala-lhe baixinho, «Passo. Galope! Oooh!» Olha-me, «Vamos?». Eu observava apenas, o cavalo que monto já tentou voltar para trás várias vezes e agora fica imóvel quando tento um passo. É fim de tarde, está muito calor, no imenso deserto desenham-se dunas pedregosas à esquerda e à direita, formando uma clareira larga, imensa. As dunas são cinza, o pó que se levanta da areia, dourado. Avanço a passo, arriscando um pequeno trote. Eles galopam. Em dias assim, no deserto, há visões de cavalos indomados a correr pelas dunas do Wadi Rum, cabeça arqueada, cauda levantada, orgulhosos. Ele monta o cavalo lendário. Sentamo-nos no al-munákh (lugar onde o camelo se ajoelha), ponto de encontro e de conversa dos beduínos, tocamos os cavalos. Os cavalos beduínos partilham com seus donos a tenda, a comida, o estatuto. Entre as tribos, de tempos a tempos, uma égua dá à luz um potro com uma mancha no ombro. Os beduínos acreditam que esta é a marca da protecção de Allah. «Há muitos anos no deserto da Arábia vivia um guerreiro beduíno que possuía uma égua especial. A égua acompanhava-o sempre e podia mesmo ler os seus pensamentos, permitindo a vitória nas batalhas e suscitando a inveja das tribos. Um dia numa luta o beduíno foi ferido gravemente. Com o seu amo inconsciente e a quilómetros do acampamento, a fêmea carregou-o caído sobre o seu ombro, com cuidado. Avançou durante dias sem comida ou água. Quando a corajosa égua chegou ao seu destino estava exausta e o seu amo estava morto. Removeram o corpo, no ombro havia uma mancha de sangue. Perderam o seu sayyd, o chefe, mas estavam gratos pela devolução do corpo à família. A viagem foi dura, a égua estava prenha, temiam. Mas na Lua Nova o potro nasceu vigoroso, saudável de qualidade excepcional. No seu ombro uma mancha, idêntica à que o sangue do amo tinha deixado no ombro da mãe.» Toco o focinho quente de um alazão. Abre os lábios e abocanha-me suavemente os dedos. Gosto de cavalos. Na minha primeira aula de hipismo experimentei o passo, o trote e o galope, em cercado e em campo aberto. Na segunda o lusitano rebelde aceitou-me no seu dorso por respeito ao amo e depois de alguns quilómetros a trote paciente fugiu em galope veloz pelos pequenos montes alentejanos, agarrei as rédeas e na curva perdi os estribos, caí. Na quinta aula a égua que montei tinha sido mãe, e a meio da encosta as saudades do potro falam mais alto - “onde é que já vi isto?” - o galope é ainda mais veloz, o corpo ágil esquiva-se dos sobreiros cujos ramos me puxam os cabelos, agarrei as rédeas e ao saltar um arbusto perdi os estribos, caí. Monto o al-hisan, hesitante. Afago-lhe as crinas, sussurro-lhe palavras doces, não há nada mais desagradável que montar um cavalo que não gosta do seu cavaleiro. As lendas cantam o cavalo árabe, só os felizardos que já o montaram podem confirmá-las. «Depois de muitos dias no deserto a tribo de beduínos libertou as éguas para que corressem a saciar a sede numa nascente. Como teste à sua lealdade as fêmeas foram chamadas antes de chegarem à água. Das muitas éguas só cinco responderam sem beberem. Ficaram conhecidas como Al Kahmsa (as cinco) e o termo passou a significar pureza de sangue para os povos beduínos.» Acreditam que o primeiro cavalo criado por Allah foi uma fêmea e que quando esta foi oferecida a Ismael, filho de Maomé, por magia deu à luz um cavalo adulto. Acreditam que a égua é mais valiosa, que dela a cria recebe o espírito, a mente, a alma, o original toque divino de Allah; e do macho as qualidades físicas. É fim de tarde, no deserto da Jordânia, contam-se histórias, cantam-se baladas. As mulheres gritam ha-WEEE-ha! nos seus zaghroutah. Ele sai para galopar nas dunas. Há poemas que o cantam como um cavalo lusitano. Ao meu encantador de cavalos.

É ?masculino?, dizem-me


Tomava um café, com amigos, na esplanada da Graça. Numa mesa ao nosso lado três bonitas portuguesas. Passam duas exuberantes espanholas. Conversam no balcão quatro fatais italianas. Bebem limonadas inglesas vitorianas. Cantam bons-dias bronzeadas brasileiras. Ri estridentemente uma cabo-verdiana. As cabeças dos meus acompanhantes masculinos vão-se voltando, em vertiginosos torcicolos. - Ai que chatice, parem lá com isso que não se consegue conversar! - protesto enciumada. Mas é “masculino”, dizem-me: - Ah! O que foi? O teu namorado não olha para outras mulheres? - ...?! A primeira vez que visitei um país islâmico fiquei espantada com a quantidade de mulheres que usam o véu. Não só no interior, nas aldeias, neste ou naquele estrato social, mas em todo o lado. Mesmo nas grandes cidades, as cabeças femininas descobertas contam-se pelos dedos de uma mão. Como conseguiram convencer tantas pessoas a tapar o corpo, os cabelos, muitas vezes todo o rosto e não raramente os olhos? O Cairo por exemplo tem 18 milhões de habitantes, como é possível? Caminho pelas ruas vestida com “modéstia”, como aconselha o corão (nunca hei-de compreender as mulheres que de férias, seja qual for o destino, clima ou cultura se passeiam de calções), mas os meus cabelos são ofensivos. Visito uma mesquita na Jordânia, na entrada encontro uma mulher vestida com uma burqa azul noite, olhos pintados de preto, dramáticos. Olhamo-nos, o nosso encontro é fugaz, interrompido pelo marido que a repreende, ela volta-se de imediato, desaparece pela mesquita, a beleza esvoaçando nos panos que a seguem. Numa rua de Damasco beijo Telmo na testa, sou insultada por um homem que passa. No mar vermelho sou observada, nalgumas mesquitas proibida de entrar. E por todos os homens a quem Telmo se dirige, sou ignorada. Não é raro e nem assim tão estranho que o egípcio que cobra entradas no museu, conduz o taxi, é dono da loja ou vende souvenirs na rua proponha preços e mulheres como moeda de troca. E com o já clássico: «quantos camelos pela tua mulher?» brincam com o ocidental, que sorri, na cumplicidade do sangue. É “masculino”, dizem-me. Na fronteira do Sudão pergunta o oficial: «Esta é sua mulher? Não está mal, eu tenho três!» E no Sudeste da Tanzânia, «Nós aqui não somos muito rígidos com o Corão, eu, por exemplo tenho sete mulheres (em vez das quatro permitidas).» À entrada de um museu no Egipto, Telmo ausenta-se por um minuto, o grupo de homens que hà pouco saudou respeitosamente agora avança para mim, a cuspir caroços de tâmaras: Hi! Tal como a nossa visão dos muçulmanos é muitas vezes deturpada pelo que vemos nos noticiários, a visão que por aqui têm das ocidentais é mais ou menos a que vende o cinema americano. Comenta um Tanzanino numa rua de Zanzibar: - Sabes que se eu sair de casa para ir namorar outra mulher tenho de dizer à minha esposa e ela pode dizer que não!? - responde Telmo - - Pois... compreendo o teu problema, mas eu para fazer isso no meu país teria de me divorciar. E numa pequena aldeia do Cazaquistão os jovens perguntam mais: - É verdade que no vosso país podem por exemplo estar com duas mulheres ao mesmo tempo, na cama? - Sim... mas é complicado sabes, tem toda a gente de querer... Na Turquia à entrada de um Hamman (banho) os homens olham-me com desprezo, e quando entro na zona mista de enorme piscina e bancos de mármore, todos abandonam a sala. Na Tanzânia os indianos convidam Telmo para fumar shisha, as mulheres não estão presentes, chama-me: - Anda para perto de mim, eles são muçulmanos mas eu não sou. - sento-me. Conversam, o tabaco é perfumado, num dos muitos cortes de energia aproveito para provar o sabor adocicado, a luz volta e sou apanhada em flagrante. Não mais tocam no cachimbo de água. Sentados numa esplanada no Cairo a comer felafel conversamos com um casal de amigos egípcios. Passa um grupo de mulheres, o olhar dele acompanha-as: - Estou a ficar velho, Telmo, tenho de me casar outra vez. Olho-o, sem palavras. Ela baixa os olhos no véu cor de mel. Bom, aqui é normal - penso para mim. Observo-a melhor e não parece normal. Reconheço a mágoa, a desilusão, o ciúme - os mesmos sentimentos que imagino em mim. Não diz nada. Eu também não, nem saberia como comentar esta “desproposta” de casamento. Baixo com ela os olhos, sorrio sem razão. «Os homens têm autoridade sobre as mulheres porque Deus os fez superiores a elas e porque gastam de suas posses para sustentá-las. As boas esposas são obedientes e guardam a sua virtude conforme Deus estabeleceu. Aquelas de quem temeis a rebelião, exortai-as, bani-as da vossa cama e batei nelas. Deus é grande.» 4:34* (Alcorão) Vamos tomar chá a casa dos nossos amigos, ela mostra-me o quarto do casal e, quando compõe o véu, os cabelos. Cabelos longos, escuros, fortes, brilhantes. Cabelos valiosos como tesouros guardados apenas para o seu rei. Olho para os meus cabelos soltos, parecem tão banais. Penso no que sentirão estes homens quando lhes são revelados os segredos - não falo das outras exclusividades do marido que até pela Europa ainda são moda (pelo menos nalgumas zonas) mas de coisas tão banais para nós como os cabelos, os braços, as pernas? Que nestas mulheres nunca foram vistas por outro homem, que nenhum outro olhará. Como se sentirão? Os nossos amigos são educados, esclarecidos, falam línguas e viajam – o marido conversa connosco durante todo o jantar, está à vontade, cumprimenta-me, toca-me, fala-nos dos seus momentos preferidos: - Fumar shisha no terraço, tê-la a dançar para mim. Ela baixa os olhos e retira-se, envergonhada. Á saída do hotel passa por nós uma mulher envolta em panos brilhantes, verde esmeralda, a cabeça de Telmo segue-a. Ah! Homens!

Zeenatahunna, a beleza


A burqa fala de confidências, encerrando o erotismo dos sinais que se desvendam, se insinuam e finalmente se revelam. Os poetas cantam a beleza da descoberta da intimidade «Ó Profeta, recomenda a tuas esposas e a tuas filhas e às mulheres dos crentes que se cubram de véus. Assim, serão reconhecidas [como mulheres rectas] e evitarão ser insultadas». 33:59* Quando o Islão rege os costumes, as ruas ficam despidas de mulheres e vestidas de panos. Caminha o mistério pelas estradas empoeiradas dos países nascidos do deserto, pelas ruas sujas das cidades que o homem construiu. Caminham volumosas sedas negras. E magras sedas brancas pontilham os grupos em que, menos arrojo de moda, se sobrepõem peças de roupa de marcas ocidentais e burqas imaginativas e fashion. Por todo o corpo se misturam os lenços Chanel, as jeans Guess, os vestidos Mango, as camisolas Zara, os sapatos Furla. Usado tudo ao mesmo tempo, é respeitada a modéstia. No Mar Vermelho tomamos o barco que nos leva aos corais mais belos. Há alguns casais de europeus e muitas famílias de egípcios e árabes sauditas. Todos nos sentamos no deck, a aproveitar o sol. Uso um biquíni azul. O Telmo abraça-me, olhamos o mar. As mulheres espiam-nos os gestos, olhos desenhados pelos panos do rosto. Fixam-nos e disfarçam, em olhares elásticos e dançantes. Observam-me num misto de curiosidade, censura, vergonha, desdém, inveja. A tripulação egípcia serve o almoço. As mulheres de burqa escondem-se, formando círculos escuros. Conseguem comer e beber levantando só uma ponta do véu, sem mostrar um milímetro de pele. Todas vestem o hijab, o traje que ‘protege a modéstia’, como manda o Corão. O marido, em tronco nu e bermudas Quiksilver, reza a Dhuhr, a oração do meio-dia. Está calor, todos saímos para a água. Todos vamos ver os mil peixes, os magníficos corais. Da família ao nosso lado, o marido e o filho vestem o fato de mergulho – e as três esposas ficam, silenciosas, envoltas nas vestes negras. A questão parece ser o conceito de intimidade. Ora, para nós, ocidentais – com a internet e o YouTube a confirmá-lo –, isso parece que já não existe. Mas por aqui, em terras de Alá, luta-se por ela: «É necessário cobrir as partes íntimas – que no homem vão do umbigo ao joelho e na mulher consistem em todo corpo». «E diz às crentes que baixem o olhar e preservem o pudor e não mostrem os seus adornos além do necessário. Que baixem o khimar sobre o seu peito e não exibam a sua beleza senão para os seus maridos. E que não façam tilintar, ao andar, os anéis de seus pés co a intenção de revelar a sua zeena [beleza] escondida». 24:31* Depois de alguns dias em países islâmicos, esta é para mim a imagem do erotismo. Não penso em mini-_-saias e decotes, rendas, sedas e cetins; numa mulher de burqa (mais ou menos como num actor com máscara) todos os movimentos, ritmos, formas, sons e tempos ficam desenhados, intensos, em contraste com os panos. É misteriosa a mulher que se esconde por detrás dos véus, e às vezes a pouca pele que se mostra nas mãos, nos pés ou na linha dos olhos é pura sensualidade. Em Kan-el-kalili, o maior mercado do Médio Oriente, escolho jóias de turquesa, o homem discute com o Telmo o preço, a mulher vem ajudar-me a experimentar o colar. Tem as mãos cobertas de luvas, os gestos bruscos, brutos. Os olhos, quase fechados, evitam-me. No café da praça Ramsés sou a única mulher. Os homens olham-_-me, os rapazes fitam-me demorando-se no meu rosto, nos meus cabelos, na minha pele. Ajeito o lenço sobre os ombros, componho a saia abaixo dos joelhos. As traduções do Corão são muitas e as interpretações diversas, mas em todas parece que Deus exige que a mulher use o khimar. Mas também parece que khimar é uma palavra árabe que significa «objecto que cobre, que oculta, que vela», e pode ser muitas coisas: um vestido, uma toalha, uma cortina, um cobertor... Sim: exige que a mulher use um casaco, um xaile, uma blusa, um lenço... para cobrir os seios. Ora isso, grosso modo, todas fazemos! Num jornal da capital egípcia, sob o título ‘A burqa está na moda’, leio um artigo que desfia razões pelas quais mesmo a mulher moderna, cairota, trabalhadora e emancipada deve usar a burqa, dando vários exemplos de situações difíceis – assédios, agressões e mesmo violações – onde as vítimas eram mulheres ‘destapadas’. Disse há uma semana que na minha primeira visita aos países do Corão fiquei espantada com o número de cabeças tapadas. Agora, fico espantada de como o mundo é pequeno: também em Portugal, nesse cantinho morno da Europa, em situações destas, se atribuí à vítima a responsabilidade da agressão. Estranho, não é? E também em Portugal o homem que tem muitas mulheres é visto frequentemente como um genuíno ‘latino’, um aventureiro, que gosta de se divertir, que é imaturo. Mas a mulher que tem muitos homens é tida vulgarmente (mesmo pelas que ostentam o estandarte emancipado do Sexo e a Cidade) como ‘uma grande cabra’. Experimento a burqa – um tecido mole, cinza, que me envolve todo o corpo. De início, tenho dificuldade em respirar, em andar, em ver: os panos tolhem-me. Avanço lentamente, aprendo as nesgas do tecido e o seu deslizar na pele. Habituo-me ao ritmo lento do tactear dos pés, não tenho pressa. Neste hijab é a minha mão que segura o lenço, logo abaixo dos olhos. Movimento-me assim, eu e os panos, inseparáveis nos ritmos e gestos. A sensação é particular: só agora me apercebo bem de quanto o nosso corpo, o nosso rosto e olhos dizem sobre nós. Assim vestida, tenho muitas informações sobre ti – e tu tens poucas sobre mim. Eu tenho uma vantagem. A burqa protege, vela. Marca o poder do olhar, a força da cadência ou insegurança de um passo, a propriedade de uma voz sem a moldura dos lábios. A burqa fala de confidências, o erotismo dos sinais que se desvendam, que se insinuam, que revelam. Os poetas cantam a beleza da descoberta da intimidade, da escolha. As mulheres levam consigo o segredo, reservado, alimentado na sua inacessibilidade. Se estou proibida de o mostrar, deixa de ser meu o tesouro. O mistério é forçado. A beleza do segredo é maculada pela força da religião, da tradição, da família, do poder do marido, do pai, do irmão, do Estado. O segredo da beleza está aqui, escondido.

Monday, March 23, 2015

não olhes para trás



Jordânia, vale de Siddim. Contam-nos os hospitaleiros descendentes de Lot que os habitantes deste vale ofenderam Deus e o poderoso os castigou submergindo tudo. Estacionamos o jipe, ao nosso lado alemães, ingleses, árabes sauditas e espanhóis. Pagamos entrada para o Mar Morto. Olhamos o enorme lago (mais de mil quilómetros quadrados) de sal e betume espalhado a leste do deserto de Judá; aqui chamam-lhe Al Bahr al Mayyit. Podemos ver na outra margem as montanhas de Israel para quem é Yam ha-Melah. Os gregos diziam que gases venenosos se desprendiam destas águas, enquanto os árabes garantiam que as aves ao tentar sobrevoá-las se precipitavam subitamente, sem vida. Visto um fato de banho debaixo da túnica. Visto um fato de banho debaixo dos olhares gulosos dos jordanos que alugam guarda-sóis. Nas espreguiçadeiras deitam-se mulheres de burqa. Pelas margens brincam árabezinhos. Está sol. Avanço para o mar de sal. A experiência promete ser única (isso é garantido, todas são). Avanço lentamente, há em todas as pessoas um silêncio especial apenas perturbado pelos gritos de uma espanhola: «pero que es maravilloso, mira que flutuo! Ah! Ah! Iiiih! e es mui bueno para la piel, no? voi quedar-me aqui, como sera para el pelo, hã?» O chão está coberto de seixos escuros. A água é quente. Monges diziam que o seu nome é inferno, que as suas águas são quentes porque sob ele arde o fogo das furnalhas de Satanás. Que nas suas profundezas vivem os danados castigadas pelo divino. Que é impuro. É alimentado pelo Rio Jordão mas garantiam que as águas sagradas não se misturam com as desta chaminé infernal, são absorvidas pela terra antes de se encontarem. A água é espessa, turva, de cheiro indefinido. Os pés avançam a custo, colando e descolando do fundo pegajoso, e, logo que passa a linha da anca, a espanhola tem razão, flutuo! É impossível pôr os pés no chão e é difícil acreditar que se deva ao sal, a força da água é estranha. Não é possível nadar, não há suficiente corpo dentro da água. E o desiquilíbrio, por mais que o desafie, não acontece. Telmo diz-me que qualquer gota que entre para os olhos é extremamente doloroso, por isso não é em saltos e jogos de vólei que passo os meus minutos nas águas do mar Morto. Como descrevê-lo? É estranho. É difícil entrar, como se o mar se recusasse a aceitar o volume do meu corpo, que perturba o seu. Depois de conseguir avançar, de pés no ar, como um sapo espalmado e inerte, flutuo. Não acontece mais nada, flutuo. Rabis diziam que homens lançados nestas águas mesmo que aqui ficassem durante dias nunca se afogariam, que aqui o ferro flutua, e as penas se afundam. Flutuo. Não consigo pensar se é bom ou não para a pele e decido não molhar os cabelos. Neste mar a concentração de sal é 10 vezes superior à dos outros oceanos. Qualquer peixe que nele entre morre imediatamente. Mas dizem que nestas águas mortas vive Tirus, uma serpente monstruosa de veneno letal, que brilha como ferro em brasa, que quando morde um cavalo mata também o seu cavaleiro. A água sente-se na pele como um ser, que se agarra a nós, que nos apalpa, que se espalha no nosso corpo como uma camada de creme espesso. Provo a água amarga. Diziam ímans que as frutas colhidas nestas margens, embora de aparência deliciosa, tinham no seu interior cinzas. A sudeste daqui ergue-se Jebel Usdum, a Montanha de Sodoma, feita de sal. Aqui o vento e a água esculpem pilares, figuras. Aqui, antes, habitavam homens cruéis e impuros. «Certa vez, Plotit, filha de Lot, alimentou um mendigo. Os outros viram: tiraram-lhe as roupas, cobriram-na de mel e ataram-na sobre a muralha da cidade, para que morresse picada pelas abelhas.» Sanhedrin 109 Ofendem deus, deus castiga. Lot é poupado graças à sua hospitalidade: «Salva-te, se queres viver não olhes para trás, não te detenhas na planície, foge para a montanha.» Génesis 19:17 «O Senhor fez cair sobre Sodoma e Gomorra uma chuva de enxofre e fogo. A mulher de Lot olhou para trás e imediatamente se transformou numa coluna de sal.» Génesis 24, 26 É verdade, “sempre, em todo o lado, para todos”. Os judeus, cristãos e muçulmanos estão de acordo: Nas margens do Mar Morto há uma estátua de sal que aprisiona o corpo e a alma da mulher de Lot. «Eu vi-a, a estátua existe ainda hoje», acreditam. Mesmo que factos o questionem: se nas mutações do vento e das águas, se apresenta por vezes enorme, com mais de dois metros, de fé inabalada afirmam os crentes: «existiam gigantes nesses tempos». Se acontecia que se formava num lugar e depois num outro - «significa então que a mulher de Lot ainda caminha». Se várias estátuas apareciam em grupo isso só tornava o mistério mais denso. «Nós visitámos o sítio entre o mar e a montanha, não conseguimos ver a estátua porque estávamos demasiado longe; mas vimo-la, com a força da fé, porque acreditamos nas Sagradas Escrituras que falam dela; e ficámos maravilhados». Os crentes visitam-na em peregrinação de fé, vêem-na, de costas voltadas para o céu, tocam-na, arranham-na, põem um pedaço na boca e todos asseguram: “sabe a sal”. Faço o meu caminho para fora das águas. Digo-o assim porque não nado ou sequer flutuo, não sei, avanço, cabeça e pés empinados fora de água, como um arco invertido. A custo, como o tal sapo dentro de uma tigela de gelatina que solidifica. Na saída procuro um seixo bonito - gosto de coleccionar estas coisas – o Mar Morto acompanha-me, uma camada de sal, mole e grossa, mancha-me os braços, as coxas, a testa. Uma camada que seca, faz comichão e pica. De acordo com o Talmud, estou coberta de Melach Sedomit, sal sodômico, o sal enviado pelo céu, pelo senhor. Envolvo-me em lama no lugar mais baixo do planeta. O sal, a serpente, os danados envolvem-me. Espalho as histórias d’O Livro. Mergulho com gosto nas piscinas das margens do mar morto. No fundo abro os olhos, como podem esta e aquela água ser o mesmo elemento? Compro cremes de fórmula La mer a preço Nivea. Seguimos por uma das mais antigas estradas do mundo, a auto-estrada do Rei, sem olhar para trás.

O zelador do templo


60km a Oeste de Homs, na Síria. 


Tiramos os sapatos. Cubro-me com um lenço negro. Entramos na mesquita pela porta Quiblah virada a Meca. Numa imensa parede batida pelo sol destacam-se epigramas em caracteres árabes. O zelador do templo aproxima-se, murmura algo e em inglês hesitante começa a ler para nós: «As inscrições recordam o nome de um emir chamado Man Atil Zaidan. Logo que subiu ao trono revelou-se ambicioso. Interessado apenas em obter dinheiro para a corte aparatosa, sobrecarregou as cidades com impostos. O Emir tinha um vizir (o que ajuda a carregar o peso) chamado Obaid Hazen, homem bom e piedoso que, preocupado, resolveu intervir.» Afasta-se da parede, sentamo-nos nos tapetes que cobrem o chão, continua num quase sussurro: «Uma noite Hazen foi ao jardim do palácio e enterrou sob o banco predilecto do rei, uma caixa cheia de moedas de ouro. Certa tarde sentou-se o emir Zaidan a repousar. Perto de si, seu vizir. Duas andorinhas vieram pousar numa amendoeira. Cantavam. O vizir mostrou-se muito atento aos pássaros e em dado momento sorriu, ficando depois sério. O monarca interrogou-o: - Por Allah? - Senhor, Príncipe dos Príncipes, vou confessar um segredo, aprendi com um sábio hindu a linguagem das aves. - Que extraordinária revelação! E de que falavam estes pássaros? - O passarinho azul que está agora a saltar do galho dizia ao outro "Dormita o nosso rei e nem imagina que debaixo dele se encontra enterrado um tesouro!". - Ele disse isso? Espantoso! O soberano ordenou de imediato que retirassem o banco e escavassem. Foi encontrado o cofre que o vizir tinha enterrado. O rei rejubilou, era certo que o seu ministro compreendia a passarada inquieta. Certa vez, ao cair da tarde, regressava o Emir a casa, com o vizir Hazen. Ao passar junto a uma muralha o senhor da Síria avistou duas corujas: - O que dizem? O vizir aproximou-se. Súbito mostrou-se tomado de fúria. Saltou do cavalo, apanhou uma pedra e atirou-a. - Sucessor do Profeta, perdão! Mas uma coruja reclama da outra: Prometeu como dote à minha filha sete cidades arruinadas, onde estão? - diz a mais velha - Há que ter paciência, verá não sete, mas 70! Basta observar a forma criminosa como o rei Zaidan governa, em poucos meses reduzirá a Síria a escombros. O emir ficou em silêncio, a profecia da coruja tocou o seu espírito.» O zelador aponta no texto sagrado: - «Aqui está o nome do emir Zaidan, até hoje lembrado por crentes e infiéis.» - «E o nome do vizir?» - «Não precisa de figurar aqui, está para sempre escrito no céu deslumbrante da Síria.» Acocora-se no chão e continua: «O famoso Califa Al-Mutawakil (que Allah o tenha!) disse ao seu vizir Calil Sadek: - Minha esposa Djohar completa amanhã 23 anos, quero surpreendê-la. Iallah! Vai! Procura no suq! Uma hora depois Sadek e um damasceno entravam no divan real. - Diz o teu nome, ó irmão dos árabes! Mostra-me as tuas preciosidades e faz conhecer o preço. - Que Allah, o Exaltado, estenda sob os pés do Príncipe o tapete da paz e a areia da felicidade e da glória! Melil olbilad el Kabir! (Salve o grande Rei do país!) Chamo-me Elias Daud Batah. Aqui estão! Colhidas entre as ondas revoltas do mar de Oman. O califa não escondeu o seu deslumbramento, continuou o sírio: - Emir dos crentes, as cinco pérolas nesta caixa de veludo violeta são verdadeiras e dignas de vossa esposa. As outras cinco, tão lindas como as primeiras, são falsas! Mas é quase impossível distingui-las. - Como pode isso ser? - Ó Rei do Tempo, a Verdade, em sua singeleza, tem muitas vezes a aparência da falsidade - as autênticas têm pequeníssimas manchas e assimetrias. E a mentira, para iludir a boa fé, veste-se com requintes de perfeição, como nestas. - E quanto queres, ó homem do turbante cor de tâmara, pelas tuas pérolas? - Cada pérola verdadeira custa apenas 10 dinares. Cada pérola falsa custará 500 dinares. - Pelo nosso Profeta! É estranho! O certo seria que as pérolas autênticas custassem 500 ou mesmo mil dinares cada e que as imitações fossem vendidas por meia dúzia de moedas! - Perdão, ó Rei dos Árabes, a vida ensinou-me algo diferente: um amigo enganoso, por exemplo, custa-nos caro, ao passo que um amigo leal e dedicado não nos dá dissabores nem prejuízos. Num casamento falso, custa amarguras sem fim o passo errado que a ilusão nos levou a praticar. Mas o que escolhe uma boa esposa e uma união acertada é feliz e prospera. O homem paga sempre mais pelo falso que pelo verdadeiro. Baseado nestas reflexões fixo o preço. Sim, o falso custa 50 vezes mais! Pode parecer estranho ao espírito menos avisado mas imito apenas a vida!» Levanta-se, Uassalam! Na despedida pedimos ajuda nas indicações do folheto do hotel, o zelador responde sorrindo «Sorry, can’t read». 65km a Oeste de Homs, perto da fronteira com o Líbano ergue-se o qalajat al-Husn, orgulhoso e solitário. O castelo desafia o tempo. Numa manhã quente a poeira do deserto satura o ar, Salah-al-Din abandona o seu acampamento. Neste dia despedem-se as mães dos filhos - nas casas dos cristãos como nas casas dos muçulmanos - negócios são adiados, casamentos não são consumados. O castelo desafia o tempo do mesmo modo que nesse dia, do seu interior, os exércitos cristãos desafiaram um frustrado Saladino no seu interminável cerco. Neste castelo os cavaleiros do templo lutaram para defender os lugares santos e os manter abertos ao culto cristão. Neste castelo os mamelucos construíram mesquitas para o seu culto. Numa tarde fresca ouvimos ao longe o sino da igreja no seu interior. Na torre de menagem esvoaçam os estandartes do Rei. Passamos as terras cultivadas que alimentam os seus habitantes, circundamos as muralhas. As portas pesadas estão abertas, avançamos. Passamos a sala gótica, os cães devoram ossos nas tapeçarias. Vemos os frescos pintados pelos Cruzados. Os aposentos reais... O castelo parece intacto, pronto para receber mais uma vez o Rei de Jerusálem. Visitamos o Crac des Chevaliers «o castelo mais admirável do mundo» para Lawrence.

Nao me sabe mal...


Quando começamos a ter saudades das festas de família e das comidas de que não gostávamos quando éramos miúdos, é sinal de que começamos a envelhecer. Lembro-me do cheiro ácido das uvas acabadas de pisar, dos lanches de bacalhau assado na brasa à sombra dos pinheiros, das ceias de bucho de porco recheado à lareira. A comida portuguesa é muito boa e saudável, toda a gente sabe. Quando na Turquia me perguntam que especialidades lusas sei fazer, eu – que sempre preferi comida indiana, chinesa ou japonesa – fico um pouco envergonhada. Na minha infância, as avós cozinhavam ‘tachada’ e os avós temperavam o vinho novo com colheres cheias de açúcar. Lembro-me de que nos dias de festa – na descamisa do milho, na vindima, na apanha da azeitona – a família aumentava. Vinham os tios da Suíça, o priminho da América, os viscondes de Torres Novas, as primas loiras de S. Mamede e as morenas da Chamusca, o tio angolano e os afilhados de Loulé, os padrinhos de Peniche, os tios da Atouguia... A minha mãe distribuía cumprimentos. «Esta é a minha mais nova. Joana Filipa, cumprimenta o primo! Não te lembras dele?». O primo crescera, já estava careca, eu olhava-o confusa... Havia muito trabalho. Durante o dia, todos se envolviam em pó e terra – e eu fugia, inventava trabalhos de casa e estudos inadiáveis. À noite todos partilhavam a refeição – e aí eu não conseguia fugir. Lembro-me do frio, do cheiro a palha e do bafo quente das vacas. À matança do porco era preciso ir com aquela ‘roupa de trazer por casa’, porque «sabes que em casa da avó te sujas sempre», e com aqueles sapatos velhos «para não estragares no lume os bons». Avançava de gorro do irmão na cabeça e Kispo da mãe pelos ombros, botins de borracha pelo joelho e calças de fato de treino entaladas em várias meias de cores diferentes. Era pouco dignificaste. Se chegava cedo e o animal ainda estava vivo, tinha ataques de vegetarianismo e estragava o apetite aos presentes com choros sobre «o pobre do bicho», «a crueldade dos homens» e as virtudes das couves e das cenouras. Às vezes chegava tarde, e o sangue fresco já ensopava o mato espalhado à porta de casa, enjoativo. Depois havia muito barulho e pouca privacidade, longas conversas sobre as minhas negas a Matemática e a minha puberdade precoce. Nestas noites cortava sempre os dedos a partir carne para chouriças e morcelas. Nauseava com as tripas para lavar com água, sal e limão. Brincava pelos cantos mais misteriosos da casa, entre manjedouras e arcas de madeira cheias de sal, milho e roupas velhas. Fazia com os irmãos e os primos bandas de música, com panelas, tachos e bacias. À refeição havia duas mesas, e era na mais baixa que se sentavam as ‘crianças’. Matulões de faces rosadas pelo fresco do ar da serra e aspirantes a artistas urbanas presumidas (como eu), todos se apertavam com os priminhos em terceiro e quarto grau em ranhos e nódoas, na mesa pequena. Todos com o mesmo tratamento do campo – revigorante, vigoroso, bruto. «Comer p’ra diante!», ia ordenando o chefe de família. Hummmm, língua de vaca cozida, delicioso! Havia sempre broa e pão caseiro, que eu comia ainda quente com manteiga e açúcar. Polvilhava de açúcar e canela as ‘filhoses’ que os meus avós maternos feitiçavam na lareira. Provava os cafés de cevada cremosos. Todos passamos por estes momentos em que a família se junta para basicamente comer. Na minha, há os que cozinham e os que comem, e eu infelizmente nunca consegui inserir-me em nenhum dos grupos. Confesso que a culinária portuguesa é para mim indigesta, mas os meus parentes foram abençoados pelo saudável ar do campo e uma pizza ou uma pasta são já demasiada ‘estrangeirice para eles’! Nas ceias de Natal, quando se servia o sofisticado bacalhau espiritual que a minha irmã cozinhava com talento, era quase por favor que os familiares levavam o garfo à boca. Ouvia-se o impagável comentário do meu avô: «Não me sabe mal». E o da minha avó materna: «É bom, não é preciso mastigar». E ainda o da minha mãe: «Sabes o que é bom? É que não é enjoativo». E era por diplomacia que a minha mãe fazia mais ou menos às escondidas um prato alternativo a esta experiência, ou seja, o prato habitual. Na minha família os mais novos não provavam as delícias tradicionais e os mais velhos desconfiavam de tudo o resto. Estou fora da casa materna há alguns anos e envelheço. Sei pelos livros que envelheço. Que quando nos chega a saudade dos cozinhados que a mamã fazia sem pompa – o arroz de grelos, o bolo de laranja, o arroz doce, a feijoada de entrecosto –, e com isso vem o lamento de não ter aprendido com a avó a tender a massa ou a fazer queijos frescos, sabemos que envelhecemos. Estou fora da casa pátria há quase dois anos, e nos caminhos pelo mundo muita ‘estrangeirice’ provei e imagino as máximas da minha família aplicadas à sopa de panquecas da Áustria, ao queijo feta da Grécia, à popular bebida ayrian da Bulgária, ao repolho recheado romeno, ao borsch da Ucrânia, ao caviar da Rússia, à carne de cavalo dos nómadas cazaques, aos olhos de carneiro dos uigures... Em terras turcas, o sentar à mesa – longo, ritual, perfumado – é delicioso. Em Antakya, embora seja pequeno-almoço, os pratos desenrolam-se, sem vergonha, em saladas de pepino, pastas de sésamo e guisados de borrego. Para meze (aperitivo) há beyaz peynir (queijo) e zeytinyagli biber dolmasi (pimentos recheados). Há cerkez tavugu (frango com nozes) no tabuleiro do fundo, e na mesa ao lado as famosas delícias turcas: ton birimi (favos de mel), antepfistikli kurabiyeler (biscoitos de amêndoa e pistácio), tavukgogsu (doce cremoso com frango), bademli gullaç (doce de leite, amêndoas e água de rosas), nuriye tatlisi (pastéis de amêndoa), susam helvasi (torrões de sésamo)... E, nos jarros, os molhos de iogurte em variações sem fim, dos doces aos salgados, dos cremosos aos empastados. É dia de festa, sou a única mulher e ofendo a refeição sagrada com a minha presença. Somos convidados a brindar com Raki. Ou melhor, o Telmo é; eu aguardo na mesa do fundo. Cubro-me com o lenço, pequeno demais para todas as partes do corpo que preciso de tapar. – Que lhe parece? É licor de anis, a nossa bebida nacional! – ... Não me sabe mal – responde o Telmo.

Já que aqui estamos

Goreme, Turquia.

10 horas.



- Estaciona aí, espera, acho que não se pode... desculpe, aqui não se pode?

- Posso?

- Não sei, não percebo o que ele diz...

- Vê aí no guia as frases fáceis.

- Em Turco não há disso, olha aqui, é impossível de dizer. Mas tento, evet? hayir? (sim, não) ele diz belki, espera lá, ora belki é... é “talvez”. Acho que está a gozar comigo.

- Deixa, levamos o Ra?

- Aqui? Mas é um museu.

- É ao ar livre, não perguntes, levamos.

Na bilheteira estranham mas aproveitam, Ra paga meio bilhete

- Bem, é fantástico.

- É incrível não é?

- Mas construíam assim porquê?

- Porque era mais fácil escavar na pedra mole do que andar a carregar. Depois vais ver em Istambul...

- Mas achas mesmo que devemos ir – Ra não faças aí, isso são frescos! – achas que devemos ir já para Istambul?

- Sim, porquê?

- Não sei, ainda não sabemos se podemos mandar de lá o jipe.

- Mas temos este contacto da Vainoglio Shipping.

- Sim, na China também tínhamos contactos e foi o que foi. E na Rússia também havia barco em Rostov e depois...

- OK, não temos a certeza mas em princípio...

- Mas eu agora queria ter a certeza porque se vamos a Istambul e não há transitário? – olha aquela, isto viver aqui dentro devia ser difícil – não sei, tenho receio que cheguemos lá e nada, mais quilómetros e depois...

- Se de lá não der vamos para a Grécia, também temos aquele contacto da Teresa, de Pátras  – as igrejas é por aqui, queres ver ou já não te apetece?

- Sim, vamos. Mas teríamos de ir para a Grécia de novo e ela não deu datas. E afinal vamos para Moçambique ou para o Vietname?

- Então não decidimos que o Vietname fica para depois?

- Sim, mas estamos sempre a mudar de planos.

- Que fazemos então?

- Sei lá, a mim apetece-me passear por aqui, não podemos fazer isto para sempre? Estou a brincar. Tenho fome. OK, vamos tentar... mas os ferrys são sempre difíceis e nós vamos dentro do jipe, num transitário vai lá o jipe sozinho... há histórias de malta que perde tudo assim, afunda-se o teu contentor, só o teu, percebes? Ou não deixam desalfandegar... não te lembras que o meu irmão falou nisso?

- Porque estás tão pessimista? Não és tu que dizes que “há trolls nas palavras”?

- Sim... mas repete lá para eu me convencer, se o jipe for no contentor do transitário nós vamos...?

- De avião, com o Ra - já me deste um beijo hoje?

- Ó pá, não faças isso, eles aqui olham muito, amor!beijam-se Vamos almoçar? tenho fome!

Esplanada.

13 horas.

- O que é que te apetece?

- Não sei, aqueles hummus e assim...

- Há kebabs de carneiro.

- Pode ser. E um pastel daqueles doces muito perfumados.

- E peço isso como ao empregado?

- É... como é que se chama? Tavukgogsu, pede lá para eu ver. Telefonas para a D. Teresa? – ei, este gato saltou para o meu prato! Bicho, bichano, sai lá daqui.

Telefonema transitário grego

- Eu para Moçambique não sei... nós fazemos é muitos transportes para o Cairo... para o Cairo não lhe dava?

- Cairo?... mas como descia depois para Moçambique? Porque por terra não dá, eh, eh -riso nervoso - como poderia ser?

- Só se fosse depois de barco de Alexandria para Maputo, deve haver, não é? De qualquer modo demora, o nosso vai a Amesterdão, compreende? são as rotas que usamos... são sempre 30 dias. Mas porque não veio de avião? Isso de vir assim por terra é um bocado complicado...

- Filipa, diz que são 30 dias.

- Ai! Como vamos ficar esse tempo à espera do jipe com o Ra?

Telefonema D. Teresina, Embaixada portuguesa em Ancara

- Andam a viajar como? Não percebi? De carro?

Pois... estou a ver... mas sabe quem se calhar pode ajudar? o nosso Embaixador no Cairo é muito simpático, telefone, pode ser, não é?

Telefonema Embaixada no Cairo

- A viajar por terra? De Portugal à China? E da China à Turquia? Caramba.

Bom, daqui... como poderia ser? Mas, desculpe lá, mas como é que faria daí donde está para chegar ao Egipto com o jipe? E, desculpe, mas estão a pensar atravessar África por terra? Isso era uma viagem fantástica.

- Quer dizer – Filipa, ele fala em atravessarmos África por terra - Nós gostávamos mas... Bom, estamos aqui a ver barcos, mas demoram muito e não é viajar por terra.

- Pois, isso é pena, mas para seguirem até aqui... Síria e Jordânia, talvez... não sei. Há a questão de Israel...

- Mas nós não temos vistos nenhuns, como não planeámos vir por aqui...

- Então mas se aí na Embaixada vos ajudassem a chegar aqui de algum modo, eu ajudo a partir daqui.

- Mas descíamos como? Quero dizer, há o problema do Sudão.

- Sim, de facto o Sudão é muito complicado... era de evitar, mas deixe-me aqui falar porque tenho muito boas relações com o Ministro Plenipotenciário no Cairo e pode desenhar-se uma rota... sei lá, sei que há um ferry para Port Sudan, não sei, estou a pensar. Falem com a Embaixada aí, eu vou ver.

- O que achas?

- Bom, eu nem imagino, atravessar toda a África por terra?

- Sim. Apetece-te mais que mandar de barco?

- Qual barco, eu já nem penso no barco!

- Mas era mais sensato e seguro, não?

- Sensato e seguro era ter ficado em casa.

- Mas e o Sudão? Nós não podemos atravessar o Sudão!

- Deixa ver, ele disse que talvez haja essas hipóteses de ferrys... Ele ficou entusiasmado não foi? Eu também fiquei!

- Eu também...

Novo telefonema para o Cairo

- Estive a ver, há a hipótese de tomar um ferry de Alexandria para a Arábia Saudita, de lá para Port Sudan, de lá para a Etiópia, porque o Sul do Sudão é que não pode mesmo ser passado. Eu achava muito interessante passarem a Etiópia, numa viagem assim, no fundo é a nossa História, é a rota de Pêro da Covilhã. Mas o que é que sentem em ir viajar num país em guerra?

Se conseguirem vir andando quando estiverem na Jordânia telefonem.

- Agora só falta arranjarmos os vistos.

- Só, dizes tu.

- É melhor avisar o MNE?

- De que queremos atravessar África? Eu até tenho vergonha.

- Bom, vamos para Ancara?

- Vamos!

Ainda hoje Luíz de Albuquerque Veloso, do MNE, nos diz

«Não poderei nunca esquecer o vosso telefonema quando estavam na Turquia a participarem-me que "já que ali estavam", iam primeiro a Moçambique (por terra) e logo iam ao Vietname!!!»