Sunday, May 3, 2015

Que tudo corra bem


Anoiteceu. Quando era muito pequena alguém me disse que temos direito a um desejo por dia. Todos nós, todos os dias. Ao anoitecer basta procurar no céu a primeira estrela, Vénus, e, dizendo a fórmula mágica - “Primeira estrela que eu vejo, realiza o meu desejo” - ter direito à atenção dos deuses. Na casa da minha mãe o lugar da estrela era emoldurado pela janela do meu quarto, ficava muitas vezes ali, sentada na janela, a namorar a visão, a conversar comigo, a pedir desejos. Durante muito tempo isto sossegou-me. Estou longe de casa, estes pensamentos acalmam o meu espírito ansioso, olho o céu, mas aqui ele é diferente. É Dezembro, estamos no Sudão. O nome, bilad as-sudaan, significa literalmente “o país dos negros”, e aqui em África as questões da cor da pele são muito importantes. Ao sol, a pele dos sudaneses brilha, o reflexo da luz na tez humedecida pelo suor cria pontos de luz branca que marcam as feições nas maçãs do rosto e no nariz. São altíssimos e esguios os corpos cobertos de túnicas brancas, nos homens, de véus de cores nas mulheres. A antiga Núbia foi uma civilização admirada por muitos séculos, mas agora não é assim. Sobre o Sudão todos nós ouvimos histórias, todos vimos imagens na televisão. Dos conflitos tribais, dos confrontos entre grupos rebeldes, das guerras pelo petróleo, das chamadas disputas religiosas. Agora que estou aqui as histórias estão nos olhos vermelhos dos rapazes que seguram as kalashnikov. No check point mandam-nos parar, os rapazes em fardas coçadas são magros e nervosos, não têem mais de 14 anos, os olhos são vermelhos, lacrimejantes, parados - das drogas, do pó do deserto, do choro, do vazio. Pedem-nos documentos, podemos seguir. Pela “não-estrada” do Norte do Sudão, por entre a tempestade de areia, literalmente a inventar o caminho. Contam-nos que num destes bloqueios de estrada, há duas semanas atrás, uma voluntária britânica foi morta, os militares disparavam para o ar e ela foi atingida por uma bala perdida. Contam-nos que há meses atrás um casal de suiços em viagem foi assediado por piratas somalis na costa do mar vermelho, chegados a terra, o coração do homem de 35 anos não aguentou, morreu nesta mesma travessia do Sahara, a mulher, grávida de sete meses, negociou com sudaneses o transporte do corpo para a capital, mulher e corpo de boleia nas traseiras de uma pick up, em solavancos e nuvens de poeira, até Cartum. Aqui acreditam na protecção dos djins e quando um menino nasce são realizadas elaboradas cerimónias onde os anciãos da tribo decidem o seu futuro. O futuro. Estarão ainda os djins, Deus ou Alá de olhos postos aqui? As histórias são de mães que carregam nos braços filhos mortos, recusando-se a enterrá-los. De pais e filhos, mortos pela mesma bala. De cubatas usadas como fogueira para queimar aqueles que ainda ontem eram os amigos, os familiares, os irmãos. Aqui, os que disparam e os que são atingidos são da mesma tribo, da mesma crença, partilharam o mesmo kebab e a mesma sombra - mas hoje tudo mudou, tudo está diferente. O país tem histórias de sangue e morte, para contar. O deserto é pálido e cinza. Dunas rochosas e duras, com desenhos de areias macias, claras. Esta que atravessamos foi em tempos chamada “a terra do ouro”. Ouro escondido na areia, no ar, nos rios, nos elementos. Mas não vimos ouro. Não vimos nada. Até as poucas aldeias estão desertas. Em Wadi Halfa as histórias estão nos povos Ababda, da tribo Beja, os “filhos de djins”, os guias do deserto Núbio, os que não são amigáveis com estrangeiros. No nosso mapa só há um nome na grande mancha de areira, Dongola, a capital do Norte. Mas passamos outros lugares, paramos, procuramos dormida, comida, orientação. Encontramos curiosidade e espanto. Vemos duas crianças descalças, com três cortes horizontais no rosto, tradicionais das tribos Manasir. Vemos as tatuagens de Henna no rosto das bonitas mulheres dos honestos Núbios. Sentimos o aperto de mão firme dos bravos, generosos e hospitaleiros Shaiqiyah, que nos convidam para ficar em sua casa. Vemos os corpos subnutridos das crianças que, de panos imundos nas mãos, se oferecem para engraxar sapatos ou lavar os carros. Vemos as mulheres envoltas em burcas azuis, os homem de turbante branco. Vemos os poucos campos cultivados junto ao Nilo pelos Mahas. E as sedentas manadas dos Nuba. No Sudão não há turistas, não há estrangeiros a passear. Sentimo-nos exploradores em terras desconhecidas. Temos a doce sensação da constante descoberta, nas mais pequenas coisas, cada experiência é a primeira; cada passo falhado, cada conversa tentada, cada olhar fugido. Como se não soubéssemos nada, como se inventássemos tudo. Pela primeira vez. Os locais olham o jipe e mal paramos mil mãos tentam abrir as portas, mil olhos se colam aos vidros. Não queremos chamar a atenção, mas é impossível. O nosso cão agita-se, rosna. Olham-me olhares secos. Avançamos. De vez em quando passa por nós uma pick up Toyota, perguntam-nos o nosso destino e até propõem que sigamos em caravana, e nós tentamos. O nosso jipe luxuoso solta “ais” a cada duna mal subida, a cada pedregulho mal pisado. Os condutores conhecem de cor este terreno impraticável, voam, desaparecem em saltos e nuvens de pó. A secura do ar do deserto abre-me fissuras nos lábios e encrespa-me o cabelo. Avançamos sozinhos, a olhar a areia, a olhar nervosamente o Sol, já enorme, no horizonte. E nós aqui, em nenhures. A sensação de ver no mapa a grande mancha sem nada e de a sentir de facto, à nossa volta, é desconcertante. A sensação de depender de uma pequena bússola que seguro apertada estre os dedos, também. Avançamos pelo nada. Anoitece. Há tempestade de areia mas por cima de mim brilha uma estrela, o céu aqui é diferente, não sei se se trata de Vénus ou da Estrela dos Viajantes, a estrela do Norte, Ísis, não sei, mas é a primeira estrela que vi aparecer no céu. Há uma espécie de nostalgia em mim, o dia acabou, ergo os olhos, canto a fórmula, peço só que tudo corra bem.

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