Sunday, May 3, 2015

A santa que pernoita


Na terra onde nasci, em certa altura do ano, ao anoitecer, tocavam à campainha: - Joana Filipa, vê quem é! - vou abrir, na soleira da porta uma pessoa (um vizinho, mas que na minha autista adolescência desconhecia) segura nos braços, em desiquilíbrio e com algum esforço, um oratório. Uma grande caixa de madeira dentro da qual repousa, de olhar doce e ausente e de mãos em oração, uma santa. - É só para entregar. – foge, com orgulho de dever cumprido e receio de nova prova. - Mãe! - com dificuldade vou até à cozinha – que é isto? - Então não vês que é uma santa? Põe na sala. Poiso-a, sem fé mas com cuidado, na sala de jantar, aquele sítio da casa onde se guardam os tesouros: as toalhas de linho, os serviços de porcelana Vista Alegre, os tapetes de Arraiolos, o vinho do Porto envelhecido. E onde, quase por tradição, ninguém entra. As portas da sala são de vidro e sempre que venho do meu quarto vejo na sala, só, a santa. A santa que (por razão bem misteriosa para mim) aqui pernoita. Visito o lugar de ninguém. Esta imagem de Catarina tem à volta umas luzinhas, semelhantes aquelas com que abraçamos as árvores que decoram o Natal. Ligo a ficha, acendem, piscam. Era mesmo capaz de lhe acender uma vela, ou um pauzinho de incenso (não fosse ele demasiado profano para ser aceite lá na casa da minha mãe). Não é a fé que me faz dedicar o tempo, os olhos ou os joelhos aos símbolos ou lugares sagrados, é aquela espécie de energia silenciosa, a maneira como o ar parece mais pesado, mais... No santuário de Fátima, no Vaticano, no templo de Apolo em Delfos, na Mesquita Azul na Turquia, ou no monte Sinai no Egipto, o ar tem vida. Na província do Sinai estamos em terreno sagrado. Anoiteceu já, seguimos viagem. Sem fé, mas com curiosidade, visito o sagrado. Sagrado para cristãos, judeus e muçulmanos. Estamos no sopé da montanha mística, Jebel Musa, do monte de Moisés, da Sarça Ardente, das tábuas da lei. O lugar está pontilhado de locais de culto e de tesouros religiosos. Avançamos, para os turistas a subida é calculada em seis horas, chegamos tarde. Gostamos de ir sozinhos, resistimos aos guias e às ofertas de burros dos beduínos. A subida é escarpada, por carreiro pedregoso, íngreme e poeirento, aqui e ali lugares de repouso, onde mulheres vendem cafés e chocolates, vamos atrasados, não paramos. Está escuro. Num dos caminhos estreitos avançamos devagar, ouvimos sons, sentimos movimento, mas não vemos nada. Serão pessoas? Avançamos lentamente, sinto algo grande perto de mim, sinto um cheiro estranho, um bafo... e uma cabeçada no ombro! Camelos. Dormem camelos nas suas posições próprias, no seu resmungar cavo, no seu mastigar lento. Mais uma cabeçada, OK, já percebi! perturbámos este dormitório. Já perto do topo Telmo vacila, - Então? Não vamos parar agora. - Mas ainda há 600 degraus! Descansamos aqui. - Assim não tem graça! - empurro-o – se as velhinhas italianas conseguiram tu não consegues? - Mas elas iam de camelo! - Moisés conseguiu! - Ele demorou 40 anos! - Ah! não sejas maricas! Vamos atrasados no Sikket Saydna Musa, o caminho de Moisés. Subimos. Subimos. A custo, subimos. Os últimos degraus são os mais difíceis, começamos a pensar que isto é um bocado palerma, vimos ver uma coisa que acontece todos os dias, bolas! Mas subimos com um objectivo, viemos de longe, (e de jipe!) para este prazer, é por isso que escalamos 2288m, de noite. Chegamos ao topo, mas no topo não há nada que cause espanto ou nos extasie. A escarpa acabou, não podemos subir mais, destas rochas avistamos mais rochas, de formas redondas, polidas. E mais nada. Há uma pequena capela da Santíssima Trindade onde se acredita que está a Sarça Ardente. Há muitas pessoas, enrolados em sacos cama ou sentados em cadeirinhas desdobráveis. Meia dúzia de ingleses têem a câmara de filmar preparada, a luz vermelha pisca, em modo de pausa. Passam os minutos, corre uma aragem. Os russos são barulhentos, os alemães trocam barritas energéticas. Um casal fixa, silencioso, o horizonte. Dois japoneses, descalços, mimam posições Thai Chi. Há uma ténue ameaça de claridade, daquele tipo que não se sabe de onde vem. Esta claridade suave, aos poucos, ocupa o espaço da escuridão. Os rochedos cinza mudam de cor, os rostos e os cabelos dos visitantes das paisagens deslumbrantes são visíveis agora, em tons frios. Olho para baixo por um minuto, procurando com cuidado a distância dos meus pés para o abismo, levanto os olhos, mesmo a tempo de ver o milagre. Os primeiros raios parecem empurrar as montanhas criando um espaço de luz... Que dizer? Saudamos o sol. Na descida tomamos um café, comemos um chocolate. Descemos o Monte Sinai. No sopé do monte está o Mosteiro de Santa Catarina. O lugar conta a história de Catarina de Alexandria, a virtuosa que aceita ser desposada, mas, ciente das suas mil qualidades, impõe aos pais condição; que o noivo seja merecedor das suas pérolas, ultrapassando-a em tudo. Visita os sábios, é visitada por visões da família celestial. Procura a beleza, a juventude, recebe a revelação, converte-se à religião da virgem que deu à luz. O mosteiro guarda as relíquias de Santa Catarina, que, conta a lenda, depois de muitos martírios foi trazida por anjos até aqui, ao Monte Sinai. Na zona em que nasci, dada a milagres, dizem as lendas que terá aparecido na serra, dentro de um tronco de árvore, uma imagem de Santa Catarina. No local foi construída uma igreja e a santa é aí venerada desde então. Esta santa pernoitou muitas vezes em minha casa, posso pernoitar por aqui? É noite. Avançamos. À semelhança da Jordânia o deserto é vigiado por militares, assustam-nos os enormes projectores que varrem a paisagem. Assustam-nos os bloqueios de estrada. Aqui basta um ou dois bidons, uma pequena cabana, duas cadeiras, um rádio de comunicações e dois soldados. - Stop, para onde? - Cairo. – alguns minutos de ruidosa comunicação com o próximo controle e removem o bidon, podemos seguir. A estrada está calma, nem um veículo passa por nós. 512 km em sete horas, à meia-noite chegamos ao Cairo.

No comments:

Post a Comment