Sunday, May 3, 2015

Zeenatahunna, a beleza


A burqa fala de confidências, encerrando o erotismo dos sinais que se desvendam, se insinuam e finalmente se revelam. Os poetas cantam a beleza da descoberta da intimidade «Ó Profeta, recomenda a tuas esposas e a tuas filhas e às mulheres dos crentes que se cubram de véus. Assim, serão reconhecidas [como mulheres rectas] e evitarão ser insultadas». 33:59* Quando o Islão rege os costumes, as ruas ficam despidas de mulheres e vestidas de panos. Caminha o mistério pelas estradas empoeiradas dos países nascidos do deserto, pelas ruas sujas das cidades que o homem construiu. Caminham volumosas sedas negras. E magras sedas brancas pontilham os grupos em que, menos arrojo de moda, se sobrepõem peças de roupa de marcas ocidentais e burqas imaginativas e fashion. Por todo o corpo se misturam os lenços Chanel, as jeans Guess, os vestidos Mango, as camisolas Zara, os sapatos Furla. Usado tudo ao mesmo tempo, é respeitada a modéstia. No Mar Vermelho tomamos o barco que nos leva aos corais mais belos. Há alguns casais de europeus e muitas famílias de egípcios e árabes sauditas. Todos nos sentamos no deck, a aproveitar o sol. Uso um biquíni azul. O Telmo abraça-me, olhamos o mar. As mulheres espiam-nos os gestos, olhos desenhados pelos panos do rosto. Fixam-nos e disfarçam, em olhares elásticos e dançantes. Observam-me num misto de curiosidade, censura, vergonha, desdém, inveja. A tripulação egípcia serve o almoço. As mulheres de burqa escondem-se, formando círculos escuros. Conseguem comer e beber levantando só uma ponta do véu, sem mostrar um milímetro de pele. Todas vestem o hijab, o traje que ‘protege a modéstia’, como manda o Corão. O marido, em tronco nu e bermudas Quiksilver, reza a Dhuhr, a oração do meio-dia. Está calor, todos saímos para a água. Todos vamos ver os mil peixes, os magníficos corais. Da família ao nosso lado, o marido e o filho vestem o fato de mergulho – e as três esposas ficam, silenciosas, envoltas nas vestes negras. A questão parece ser o conceito de intimidade. Ora, para nós, ocidentais – com a internet e o YouTube a confirmá-lo –, isso parece que já não existe. Mas por aqui, em terras de Alá, luta-se por ela: «É necessário cobrir as partes íntimas – que no homem vão do umbigo ao joelho e na mulher consistem em todo corpo». «E diz às crentes que baixem o olhar e preservem o pudor e não mostrem os seus adornos além do necessário. Que baixem o khimar sobre o seu peito e não exibam a sua beleza senão para os seus maridos. E que não façam tilintar, ao andar, os anéis de seus pés co a intenção de revelar a sua zeena [beleza] escondida». 24:31* Depois de alguns dias em países islâmicos, esta é para mim a imagem do erotismo. Não penso em mini-_-saias e decotes, rendas, sedas e cetins; numa mulher de burqa (mais ou menos como num actor com máscara) todos os movimentos, ritmos, formas, sons e tempos ficam desenhados, intensos, em contraste com os panos. É misteriosa a mulher que se esconde por detrás dos véus, e às vezes a pouca pele que se mostra nas mãos, nos pés ou na linha dos olhos é pura sensualidade. Em Kan-el-kalili, o maior mercado do Médio Oriente, escolho jóias de turquesa, o homem discute com o Telmo o preço, a mulher vem ajudar-me a experimentar o colar. Tem as mãos cobertas de luvas, os gestos bruscos, brutos. Os olhos, quase fechados, evitam-me. No café da praça Ramsés sou a única mulher. Os homens olham-_-me, os rapazes fitam-me demorando-se no meu rosto, nos meus cabelos, na minha pele. Ajeito o lenço sobre os ombros, componho a saia abaixo dos joelhos. As traduções do Corão são muitas e as interpretações diversas, mas em todas parece que Deus exige que a mulher use o khimar. Mas também parece que khimar é uma palavra árabe que significa «objecto que cobre, que oculta, que vela», e pode ser muitas coisas: um vestido, uma toalha, uma cortina, um cobertor... Sim: exige que a mulher use um casaco, um xaile, uma blusa, um lenço... para cobrir os seios. Ora isso, grosso modo, todas fazemos! Num jornal da capital egípcia, sob o título ‘A burqa está na moda’, leio um artigo que desfia razões pelas quais mesmo a mulher moderna, cairota, trabalhadora e emancipada deve usar a burqa, dando vários exemplos de situações difíceis – assédios, agressões e mesmo violações – onde as vítimas eram mulheres ‘destapadas’. Disse há uma semana que na minha primeira visita aos países do Corão fiquei espantada com o número de cabeças tapadas. Agora, fico espantada de como o mundo é pequeno: também em Portugal, nesse cantinho morno da Europa, em situações destas, se atribuí à vítima a responsabilidade da agressão. Estranho, não é? E também em Portugal o homem que tem muitas mulheres é visto frequentemente como um genuíno ‘latino’, um aventureiro, que gosta de se divertir, que é imaturo. Mas a mulher que tem muitos homens é tida vulgarmente (mesmo pelas que ostentam o estandarte emancipado do Sexo e a Cidade) como ‘uma grande cabra’. Experimento a burqa – um tecido mole, cinza, que me envolve todo o corpo. De início, tenho dificuldade em respirar, em andar, em ver: os panos tolhem-me. Avanço lentamente, aprendo as nesgas do tecido e o seu deslizar na pele. Habituo-me ao ritmo lento do tactear dos pés, não tenho pressa. Neste hijab é a minha mão que segura o lenço, logo abaixo dos olhos. Movimento-me assim, eu e os panos, inseparáveis nos ritmos e gestos. A sensação é particular: só agora me apercebo bem de quanto o nosso corpo, o nosso rosto e olhos dizem sobre nós. Assim vestida, tenho muitas informações sobre ti – e tu tens poucas sobre mim. Eu tenho uma vantagem. A burqa protege, vela. Marca o poder do olhar, a força da cadência ou insegurança de um passo, a propriedade de uma voz sem a moldura dos lábios. A burqa fala de confidências, o erotismo dos sinais que se desvendam, que se insinuam, que revelam. Os poetas cantam a beleza da descoberta da intimidade, da escolha. As mulheres levam consigo o segredo, reservado, alimentado na sua inacessibilidade. Se estou proibida de o mostrar, deixa de ser meu o tesouro. O mistério é forçado. A beleza do segredo é maculada pela força da religião, da tradição, da família, do poder do marido, do pai, do irmão, do Estado. O segredo da beleza está aqui, escondido.

No comments:

Post a Comment