Sunday, May 3, 2015

Cairo, o triunfante


Em Dezembro estamos no Cairo. A cidade das mesquitas, das pirâmides, do estreito Nilo, do suq, dos hotéis luxuosos, do trânsito caótico, dos odores, dos ruídos, das cores, das danças, dos mortos. Das mesquitas das relíquias, de Al-Azhar centro das madrassas do mundo árabe. Do Nilo das discotecas flutuantes. Onde ao anoitecer se enfileiram as gentes, sentadas em silêncio em pequenos grupos. Chegando ao centro do Nilo, acendem-se as luzes de festa, toca a música dos ritmos estridentes, movem-se os corpos em desafios e cortejamentos. Dos Dervishes. Das danças dos homens de tez escura. Núbios feitos de tronco e de saias, equilibrados em pés rápidos, olhos para o céu, rodopios vertiginosos, saias longas em camadas, que se levantam e descem como uma ampulheta colorida. Dos ventres que se escondem e se revelam em ritmos que fazem encaracolar os dedos e desenrolar os braços, ondular a coluna e sassaricar a anca, soltar os peitos e fazer viajar o olhar. Do medieval suq das mil bancas. Das lojas/ casa, onde antes de acertar o preço somos recebidos pelos primos, beijamos os filhos, vemos as fotografias das mães, afagamos os gatos de estimação, conhecemos os comerciantes da concorrência e ao sabor de muito chá experimentamos tudo. O suq dos móveis, dos candeeiros, das especiarias, dos fatos de danças do ventre, dos lenços, das burqas, dos chás, das babuskas, das jóias de prata, das cebolas, dos tapetes, do pão achatado, dos perfumes, dos mapas, dos papiros, das velas. Das esfinge pisa-papéis, dos Anúbis caneta, das t-shirt Cleópatra, dos cinzeiros Ramsés. Das caixas de madre-pérola, dos jarros de vidro martelado, das pirâmides coloridas... O bazar dos 1001 tesouros, onde a pergunta «do you have...» é sempre interrompida por «yes!». Das lojas misteriosas - com uma secretária, uma cadeira, um homem atrás da secretária, paredes por pintar, prateleiras vazias, «welcome, welcome!» Mas que vendem eles? Dos chás que atravessam a rua, em tabuleiros sujos, nas mãos de homens de gyllaba, para levar ao polícia, ao guarda, ao senhor que espera no multibanco, ao dono da loja em frente. Do café centenário, sempre aberto. Dos espelhos tomadores de almas de um século. Dos chás doces de karkadé quente, dos cafés espessos da turquia. Das mesas repletas de homens. Dos grupos de mulheres rebeldes, de unhas vermelhas, olhos negros e véus claros. Do eterno trânsito, de ruído contínuo. Dos maiores perigos no Egipto - o de atravessar a estrada. Da condução livre - para conduzir não é preciso ter carta de condução, apenas possuir um carro. Da condução escura - acreditam os egípcios que os faróis cegam os olhos dos condutores, avançam de luzes apagadas, acendendo-as, em sustos cardíacos, quando passam por outro veículo. Dos odores da shisha que fumamos sentados nos sofás em frente ao Nilo. Do cheiros secos dos incensos, dos doces dos chás. Do cheiro do cobre fundido nas ruas. Dos odores das margens sujas do Nilo, dos homens acocorados a sujar a beira da estrada. Dos excrementos de pessoas e animais. Dos cavalos magros, dos burros, dos camelos, dos gatos. Das peles curtidas. Do lixo. Do cheiro pesado e seco do ar poluído. Dos sons da contínua oração, da música pop religiosa, da música egípcia de voz masculina alongada e de coros femininos. Das guitarras e cítaras a acompanhar o cantar das bocas das mulheres amordaçadas nos panos. Dos gritos das crianças. Das buzinas dos táxis Peugeot 504 velhíssimos. Dos cascos dos cavalos em compasso com o chiar das rodas de ferro das caleches. Dos vendedores ambulantes, dos guias turísticos, dos zeladores dos templos nos seus constantes «Habibi, habibi!! Aqui, aqui!» Das cores empasteladas da areia, do asfalto gasto. Dos homens de túnicas cor branco poeira, cinza fumo, castanho terra. Dos pés escuros cobertos de pó. Das burqas negras, dos lenços verde islão. Do vermelho, do amarelo, do dourado, do azul, do prateado, do brilho das lantejolas das dançarinas, das actrizes, dos músicos, das guitarras, do interior dos carros, dos telemóveis, das montras, das publicidades, das caleches, dos arreios dos cavalos. Das paisagens encantatórias, da visão de deserto rodeando a cidade. Do Cairo como uma ilha de betão num mar de areia. Do pesado policiamento das ruas. Da polícia de turismo, de trânsito, do exército. Por todo o lado; sentados debaixo das árvores, a dormir nas pick up, encostados aos portões dos museus, sentados atrás da secretária na beira da estrada. Forças armadas em fardas sujas, desalinhados, subnutridos. Dos hotéis de luxo. Das cama super king, dos bufets principescos, dos pequenos almoços intermináveis, das casas de banho aquecidas e arrefecidas em turcos e mármores. Dos banhos perfumados, das cortinas voluptosas, dos sofás macios. Dos lobby amplos, dos bons tapetes debaixo dos pés, dos roupões de seda no corpo, dos linhos suaves na almofada, das escadarias decoradas. Dos night clubs sofisticados. Da cidade dos mortos, na outra margem do Nilo. Do sol que se põe a Oeste. Do lado Leste a vida, do outro lado, a morte. Ninguém vive entre os mortos. Antes era assim. O Cairo, a cidade triunfante, cresceu. Agora, entre os cemitérios e o culto da além-vida vivem os bairros de lixo. Da cidade dos enigmas devoradores de homens, da Esfinge guardiã. Da cidade das descobertas, onde não há desilusões. Da grande pirâmide que visitámos sozinhos - em ano de atentados terroristas - onde subimos de cócoras os túneis e depois de gatas o labirinto. Onde galgámos os degraus e chegámos, sós, ao coração do tesouro. Das pirâmides dos momentos mágicos. Do silêncio. Sentimos a massa de pedra e areia à nossa volta, debaixo, por cima de nós. Sentimos no corpo a memória do caminho estreito que fizémos até aqui, entre paredes húmidas, nos degraus apenas improvisados. As câmaras abertas que atravessámos, e as câmaras secretas, escuras, por explorar, que não sabemos onde levam. Ouvimos ruído, parecem passos; aproximam-se. E outro som, parece o da respiração, ofegante. E vemos um vulto, parece o guarda, «não sabia que estavam aqui, vamos fechar!»

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