Há histórias de num amanhecer de nevoeiro ele avançar pela cacimba, de mão aberta, e encontrar a língua húmida e o bafo quente de um cavalo branco.
Há histórias de cavalos lusitanos, inteiros, rebeldes e temperamentais - o mesmo cavalo que se recusava a ser montando, que estacava imóvel durante horas; que deitava ao chão homens feitos – o seguirem como cachorros, a mastigar pachorrentamente o seu velho chapéu de palha.
Cavalos perdidos nas montanhas do Gerês, nas planícies alentejanas, nos Alpes da Áustria, na estepe cazaque ou no deserto da Jordânia vêm conversar-lhe. Coisas só deles, de outros tempos, de outras vidas, de quando-
«Allah tomou uma mão cheia de El Marees, o vento Sul, e bafejando-o criou o cavalo, "Eu criei-te. Para que sejas único terás o olhar da águia, a coragem do leão e a velocidade da pantera.
Do elefante dou-te a memória, do tigre a força, da gazela a elegância.
Os teus cascos terão a dureza do sílex e o teu pêlo a maciez da plumagem da pomba.
Irás saltar mais do que o gamo, e terás do lobo o faro. Serão teus à noite os olhos do leopardo, e orientar-te-às como o falcão, que regressa sempre a casa.
Serás incansável como o camelo, e fiel como o cão!
E para sempre te dou a beleza da rainha e a magestade do rei.
Hossane, que a doçura da vitória repouse sobre os teus olhos. Que carregues no teu dorso tesouros. Que a tua sela seja o meu templo. Que voes sem possuir asas e conquistes sem o uso de nenhuma espada.»
De quando o cavalo correu selvagem pelo deserto.
De quando o destino do Árabe foi tecido na história do Ocidente.
Num entardecer de Verão no deserto da Jordânia, nos “Estábulos do Rei”, encontra os cavalos. São encontros, ou, correndo o risco de ser mística, reencontros.
Escolhemos dois cavalos, ele monta a égua branca de crina entrançada, Shakira(!?). À saída do estábulo conversam, ela em relinchos, saltos, volteios, resistências e cedências, como jogos amorosos. Ele concentrado, transpirado, testa-a, fala-lhe naquela língua só deles, puxa-lhe as rédeas, bate-a nos flancos. Ela rodopia, resfolega, coceia, galopa, trota e imobiliza-se. Passam os minutos. Namoram. Ele já nem usa as rédeas ou os estribos, ela move-se, suave, ao ritmo da voz dele, sem hesitações, sem dúvidas. Ele fala-lhe baixinho, «Passo. Galope! Oooh!»
Olha-me, «Vamos?». Eu observava apenas, o cavalo que monto já tentou voltar para trás várias vezes e agora fica imóvel quando tento um passo.
É fim de tarde, está muito calor, no imenso deserto desenham-se dunas pedregosas à esquerda e à direita, formando uma clareira larga, imensa. As dunas são cinza, o pó que se levanta da areia, dourado. Avanço a passo, arriscando um pequeno trote. Eles galopam.
Em dias assim, no deserto, há visões de cavalos indomados a correr pelas dunas do Wadi Rum, cabeça arqueada, cauda levantada, orgulhosos. Ele monta o cavalo lendário.
Sentamo-nos no al-munákh (lugar onde o camelo se ajoelha), ponto de encontro e de conversa dos beduínos, tocamos os cavalos. Os cavalos beduínos partilham com seus donos a tenda, a comida, o estatuto.
Entre as tribos, de tempos a tempos, uma égua dá à luz um potro com uma mancha no ombro. Os beduínos acreditam que esta é a marca da protecção de Allah.
«Há muitos anos no deserto da Arábia vivia um guerreiro beduíno que possuía uma égua especial. A égua acompanhava-o sempre e podia mesmo ler os seus pensamentos, permitindo a vitória nas batalhas e suscitando a inveja das tribos. Um dia numa luta o beduíno foi ferido gravemente. Com o seu amo inconsciente e a quilómetros do acampamento, a fêmea carregou-o caído sobre o seu ombro, com cuidado. Avançou durante dias sem comida ou água. Quando a corajosa égua chegou ao seu destino estava exausta e o seu amo estava morto. Removeram o corpo, no ombro havia uma mancha de sangue.
Perderam o seu sayyd, o chefe, mas estavam gratos pela devolução do corpo à família. A viagem foi dura, a égua estava prenha, temiam. Mas na Lua Nova o potro nasceu vigoroso, saudável de qualidade excepcional. No seu ombro uma mancha, idêntica à que o sangue do amo tinha deixado no ombro da mãe.»
Toco o focinho quente de um alazão. Abre os lábios e abocanha-me suavemente os dedos. Gosto de cavalos. Na minha primeira aula de hipismo experimentei o passo, o trote e o galope, em cercado e em campo aberto. Na segunda o lusitano rebelde aceitou-me no seu dorso por respeito ao amo e depois de alguns quilómetros a trote paciente fugiu em galope veloz pelos pequenos montes alentejanos, agarrei as rédeas e na curva perdi os estribos, caí. Na quinta aula a égua que montei tinha sido mãe, e a meio da encosta as saudades do potro falam mais alto - “onde é que já vi isto?” - o galope é ainda mais veloz, o corpo ágil esquiva-se dos sobreiros cujos ramos me puxam os cabelos, agarrei as rédeas e ao saltar um arbusto perdi os estribos, caí.
Monto o al-hisan, hesitante. Afago-lhe as crinas, sussurro-lhe palavras doces, não há nada mais desagradável que montar um cavalo que não gosta do seu cavaleiro.
As lendas cantam o cavalo árabe, só os felizardos que já o montaram podem confirmá-las.
«Depois de muitos dias no deserto a tribo de beduínos libertou as éguas para que corressem a saciar a sede numa nascente. Como teste à sua lealdade as fêmeas foram chamadas antes de chegarem à água. Das muitas éguas só cinco responderam sem beberem.
Ficaram conhecidas como Al Kahmsa (as cinco) e o termo passou a significar pureza de sangue para os povos beduínos.»
Acreditam que o primeiro cavalo criado por Allah foi uma fêmea e que quando esta foi oferecida a Ismael, filho de Maomé, por magia deu à luz um cavalo adulto. Acreditam que a égua é mais valiosa, que dela a cria recebe o espírito, a mente, a alma, o original toque divino de Allah; e do macho as qualidades físicas.
É fim de tarde, no deserto da Jordânia, contam-se histórias, cantam-se baladas. As mulheres gritam ha-WEEE-ha! nos seus zaghroutah.
Ele sai para galopar nas dunas.
Há poemas que o cantam como um cavalo lusitano. Ao meu encantador de cavalos.
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