Sunday, May 3, 2015

O grande mar de areia


Em Sakara visito a pirâmide de Djoser, converso com Telmo, mas logo que monto o camelo que nos leva a ver os túmulos e avisto o Sahara deixo de o ouvir, - Acontece que... Filipa? Mas é o guia que lhe responde, - Ela nunca viu pois não? Espere, não vale a pena falar, o deserto não gosta de palavras. A primeira vez que piso o que os egípcios chamam o grande mar de areia apetece-me pedir que liguem as luzes do estúdio e desliguem os efeitos especiais. É falso, tenho a certeza! Aos primeiros passos, a enorme extensão de nada amplifica todos os sons. Como se estivesse numa caixa, como se o chão fosse oco debaixo de mim. Como num cenário. O silêncio é absoluto. O ar é denso e pesado. - Gostava de um dia atravessar o deserto todo. Disse então. - Cuidado. Tem cuidado com o que pedes aos deuses, eles podem conceder-to. Falo baixinho, com cuidado e respeito, não quero perturbar as filmagens. Imagino o camelo num desmaio, ou o carro em que viajamos sem gasóleo, a garrafa sem água, os pacotes sem bolachas... o que faríamos? Estamos no reino do deus Set, o duro e estéril reino da morte. Espaço de monstros-serpente metamorfoseados em mulher, que seduzem os viajantes e os devoram. Das bruxas que procuram cadáveres, que os decapitam e carregam na boca as suas cabeças, como animais. Sinto o cheiro seco a pó quente. Invade-me as narinas, desce a custo até ao peito, onde descansa, tirando-me o fôlego. Aqui temem-se as tempestades, crendo na intenção malévola do soprar do vento sul: repentino, quente, destruidor. Receiam-se os cantos das dunas; os sons da areia tocada pelo vento - ou serão batuques de seres subterrâneos que vivem sob elas, o que ouvimos? Tudo começou quando seguíamos a estrada que atravessa, Sahara adentro, o Egipto. Estrada que acompanha o deserto e é acompanhada pelo Nilo. Ou melhor, tudo começou quando... não sei. Nas nossas rotas já não sei onde começa este deserto. Nas planícies áridas da Turquia? No vermelho Wadi Rum da Jordânia? Bom, de certeza no Sinai, onde fica a mística montanha de Moisés. Por terra, de jipe, atravessamos o Sahara. A palavra não voltará a significar o mesmo para mim. A travessia é uma experiência mágica. E dura. No mapa mundo há enormes manchas brancas, feitas de nada. O Sahara é uma delas, este que é chamado o Grande Deserto é o maior do mundo, ocupa quase todo o Norte de África. Sempre quis visitá-lo. Mas visto de dentro o deserto não é o “nada”, é cheio. De homens, de lendas, de animais letais. A visão poética pode ser uma visão de inferno e demónios. Cinco minutos de caminhada, em Agosto, no deserto Ocidental do Egipto são o suficiente para sofrer alucinações e vislumbrar uma miragem. O bastante para sentir como é fácil nos perdermos por aqui, como é fatal o caminho errante no espaço dos djins; os espíritos da terra, do sol, do vento, das raras plantas sobreviventes. É perigosa a paisagem das areias douradas, puras, femininas. A casa do vento, masculino, irascível, violador. Acompanhamos o deserto até Assuão, entramos no reino de Anqet, a amante da Núbia, a que abraça as águas do rio Nilo, a deusa fértil e amorosa de corpo de gazela. Aqui vivemos a sensação da última fronteira, o limite com o desconhecido. Entramos no terreno das paixões e dos feitiços, dos deslumbramentos e dos mistérios, das visões. O lugar de prisão e da fuga; do domínio e da submissão. Muitas vezes visitei Assuão; de avião, de comboio, de cruzeiro no Nilo, e regressei. Queimei sob o sol forte do Sul do Egipto; bebi chá gelado na esplanada do hotel de Agatha Christie, o Old Cataract; atravessei de Feluca o Nilo - a falta de vento transforma o passeio de 20 minutos em duas horas ao som de palmas e notas de música, arranhadas pelos nossos jovens barqueiros; visitei nas ilhas os templos; nas margens os túmulos. Dormi seis noites no hotel sobre a água, subindo e descendo o rio, vivendo o romance da viagem de César e Cleópatra. E regressei a casa, com histórias e souvenirs. Regressei. Agora visito-a para seguir o caminho dos grãos de areia. A partir daqui já não há cidades senão as das lendas que falam de construções em ouro e mármore negro. Cidades de cultos misteriosos e habitantes estranhos. Cidades secretas, enfeitiçadas, perdidas ou por descobrir. Cidades criadas na fertilidade surpreendente dos óasis. Com praças de estátuas que falam sob a luz do sol, encantatórias. Com portões de esculturas assassinas; de homens - como viúvas-negras; de estrangeiros - como esfinges carrascos. Para atravessar o deserto sigo para a água. Para o Nilo que cria o lago que fendeu as dunas, que desalojou os núbios, que prendeu os crocodilos, que salva a vida mantendo o Nilómetro na linha, que alimenta o Egipto. Não me parece tão doce o sumo de manga, tão calma a água, tão alegre a dança ou tão saboroso o buffet onde num pequeno hotel de cristãos comemoramos o Natal. Parecem lamentos os sons de Assuão, quando peço a protecção de Anqet, de todos deuses, dos reis mortos, e dos vivos na eternidade. Na rua uma criança que vende papiros passa-me para a mão uma pedra pintada, em segredo, como se me oferecesse um tesouro desenterrado do túmulo do faraó, «For you madam, just for you. Is secret from me. No money, my gift.» Aceito, no egipto tudo é mágico. Guardo a pedra, o amuleto antigo, forjado pelas mãos secas dos egípcios de hoje. Guardo o escaravelho turquesa e presto culto à arte e crenças de outros tempos. Não sei se este objecto tem Ka, alma, mas não duvido. Levei-o pelo deserto, nos meus sacos; entre pedras de Rum, seixos do mar negro e lamas do mar morto; entre medalhas beduínas e corujas de bronze gregas; olhos de cabra turcos e alhos romenos; o Masbahan cazaque e as moedas chinesas. Protegeu-me deserto dentro, África dentro, até hoje, até aqui, enquanto escrevo este texto. A pedrinha egípcia em forma de escaravelho salvou-me. Alah! Mas hoje é dia 25 de Dezembro, o nosso 116º dia de viagem, estamos em Assuão, ainda não sei isso. Amanhã entramos num dos mais agrestes ambientes do mundo, regressaremos?

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