Há 15 dias que vivemos no Cairo a tentar reunir, como talismãs, as licenças e vistos para seguir a nossa viagem e atravessar por terra África.
Com arte e feitiçaria egípcia, entre panos mortalha de múmias e tinturas de sangue sagrado, com a proteção de sibilas e feiticeiras, tentamos.
É duro o caminho em África, mesmo antes de começar.
Na nossa rota há um país impossível de evitar.
Grandes países, grandes problemas - Sudão.
O taxi leva-nos da rua das Pirâmides até à baixa.
Ao lado de uma bomba de gasolina, está a pequena, suja e pobre Embaixada do Sudão. Não há guardas bem fardados à porta, portões brilhantes, parque onde é proibido estacionar devido às ameaças de bomba. Nada.
Nada mais que um esconço de dois andares, duas portas de chapa metálica e um amontoado de gente. Alguns parecem dormir aqui há vários dias.
Aproximamo-nos segurando com confiança o cartão de visita de Adil Hussein Sharfi o Ministro Plenipotenciário, que nos deu o nosso Embaixador. Com dificuldade conseguimos chegar à porta, que é fechada por um gordo sudanês em fato de tyrilene. Tentamos o nosso melhor árabe e estendemos o cartãozinho, conseguimos que telefone. Não sabemos para onde, claro, pode ser a chamar a polícia, mas um telefonema é alguma coisa.
Um homem de jellabiya branca pede que o sigamos. Subimos, passamos vários locais de oração; sujas carpetes verdes e chinelos abandonados por perto.
O Ministro recebe-nos em fato e gravata impecáveis, oferece-nos karkadé (chá de hibisco) e contamos a nossa história. Ou quase, dizemos que a nossa vontade de atravessar o Sudão não é só geográfica e circunstancial, não! é genuíno interesse em tomar contacto com a cultura.
Confesso que devido às notícias de guerra e conflitos, de atravessar o Sudão temos medo, e de contactar com as populações, pavor!
E talvez por isto, por ser além fronteiras esta a imagem do Sudão, talvez por querer alterá-la Sharfi seja tão atencioso connosco.
- Querem visitar o meu país? Sim, vão adorar! É um país lindo, de gente boa.
Mas... estão habituados a viajar por terra em África?
- Bom... sim, aqui no Egipto e...
- Não! Aqui não é África! Ah!Ah! aqui é bom, muito dinheiro.
- ... Pois... nós não temos mapa mas...
- Ah! Ah! Mapas, sim – continua no seu riso aberto, grave – No Sudão não há estrada, não há placas! Mapa para quê?
Em África sabe como viajamos? Perguntamos num lugar como se vai para o outro.
- Então de Wadi Halfa vamos para...?
- Não, quando chegarem a Wadi não sigam o deserto, sozinhos vão perder-se, é muito perigoso. Esperem pelo comboio para Cartum, leva o jipe também. De Cartum sigam sempre para Sudeste e hão-de chegar à Assubia, não se enganem, não sigam para Sul.
- Mas nós estamos habituados a países difíceis, a estradas más, temos tempo...
- Não, não é isso amigos - matam pessoas. Os corpos são tantos que os atiram para o Nilo, as águas estão contaminadas... De Juba para baixo é terreno esquecido por Alá.
Silencia-se em nós o espírito aventureiro.
De alma e plano abalado, escutamos:
- De Cartum seguem para a Assubia, Abissínia, Etiópia.
Etiópia está nas notícias, com guerra reacesa com a Somália...
Começo a pensar onde poderei encontrar saliva de reis, cabelos de albino, unhas de chefes tribais, carne de virgem, garras de leão, pele de crocodilo, sementes de plantas venenosas, dentes de cobra e ossos de mortos. Para o talismã!
No gabinete de Sharfi preenchemos os formulários que são enviados para Cartum,
- Agora esperamos pela resposta.
Para nós, pela sentença. Dependemos deste visto para seguir viagem!
Fazemos muitas visitas à Embaixada, pelo caminho repetimos a Osíris a fórmula mágica:
«Não matei homens.
Contentei o deus com aquilo que ele ama.
Dei pão aos famintos, água aos sedentos, roupa aos nus e condução para os que não tinham barco.
Salvai-me, protegei-me, e não testemunheis contra mim perante o grande deus!
Tenho a boca pura e as mãos puras;
Sou um a quem dizem: “bem-vindo!”, quando me vêem.»
(Livro dos mortos do Antigo Egipto)
O porteiro do fato de tyrilene já nos conhece, somos recebidos pelo ministro de imediato e convidados a sentar e a tomar chá,
- Talvez amanhã, Inshallah (se deus quiser).
Esperamos.
Telefonamos para a Embaixada da Arábia Saudita, podemos seguir de ferry para Jedah, e aí tomar outro até Porto Sudão, no mapa parece possível.
Estamos no último mês do calendário islâmico, o mês da Al-hajj, a peregrinação a Meca, há cerca de um milhão e duzentos mil peregrinos, a fazer esta viagem com devoção...
Da Embaixada confirmam, impossível, para não-muçulmanos.
E mais vezes visitamos Sharfi, onde aguardamos o final da primeira oração do dia, e da segunda...
- Talvez amanhã, inshallah.
E se formos por mar, com o jipe num contentor?
- Fazem o trajecto? E levam passageiros?
- Não! Mas... vou ver – Sim, o capitão aceita levar-vos, mas... são 30 dias de viagem, por mar... os barcos são preparados para a tripulação, aguentam?
Mais uma vez vamos à Embaixada, preparados para ouvir a máxima de que isto dos vistos só Deus sabe.
- Parece que não desistem! Querem mesmo ir?
- É só atravessar, não ficamos muito tempo - suplicamos nós. Ele ri-se, divertido. Continua:
- Bebam mais karcadé.
Bem, eu sou amigo de um grande homem do Sudão, Abuel Gassim Gor. É professor de teatro na universidade de Cartum, talvez possa ajudar - faz um telefonema, fala em árabe, sorri, gargalha, passa-nos o telefone,
- Sim, claro, conferência de “Arte para Paz” sim, sim, nós podemos! Enviamos o mail ainda hoje. - corremos até ao internet café mais próximo,
- Não acabou o seu karcadé!
Agora basta aguardar que Gor nos responda com o convite.
Esperamos.
Um dia.
Dois dias.
Sharfi fez magia, recebemos o convite! Assim protegidos basta a visão pura do papel branco decorado com a magia dos caracteres árabes para todas as portas se abrirem para nós. Na Embaixada, na fronteira, no control policial, no juízo final.
De amuleto junto ao coração seguimos o nosso caminho, no nosso 103º dia de viagem, a 150USD por cada visto (!) temos autorização para o Sudão!
Coragem, os deuses estão connosco e Ísis, a boa estrela, protege-nos!
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